OS DIAS EM QUE A SUÍÇA DESCOBRIU A DESIGUALDADE

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data quinta-feira, 26 de maio de 2011 0 comentários

Foi no finalzinho de abril, uns três dias antes do acidente fatal que encerrou a carreira de Ayrton Senna no autódromo Enzo e Dino Ferrari, em Ímola, durante o Grande Prêmio de San Marino em 1º de maio de 1994.

Encontrava-me com familiares na França, convidado que fora para uma temporada de estudo no Instituto Internacional de Planejamento da Educação, vinculado à UNESCO. O feriado prolongado possibilitou o retorno à cidade universitária de Friburgo, na Suíça, onde vivi nos anos 70, para rever alguns conhecidos e encher os olhos com a paisagem das montanhas, a ponte sobre o rio Zähringen, o bairro Shönberg, os relógios, as vacas, o castelo e a fondue de Gruyères.

Membros das famílias Wassmer e Morard logo nos anteciparam a notícia, confirmada por Ramon Sugranyes e outros, de que parte da população se sentia chocada com a descoberta de que em cada grupo de cem trabalhadores de tempo integral, onze estavam ganhando apenas mil francos por mês, equivalentes então a 740 dólares. Essa remuneração, em muitos países, seria um sonho. Mas lá, para os onze por cento em causa, parecia ser a irrupção do fantasma degradante da desigualdade num país com salário médio nacional de quatro mil francos, ou 2960 dólares, em valores do tempo.

A informação constava de recente levantamento sobre a estratificação social do país, ou da diferenciação econômica, política e cultural entre camadas da população. Esta passava, a saber, por exemplo, que o filho de pai com diploma superior tinha 50 vezes mais chance de entrar na universidade do que a filha de um pai que não fora além dos estudos primários. Em Genebra, os esforços empreendidos para ampliar o tempo de escolaridade não tinham conseguido impedir o aumento da repetência e a disparidade de acesso aos estudos de longa duração. O fenômeno atingia, sobretudo, os filhos de operários, estrangeiros ou não.     

Em tempo de pleno emprego, essa constatação parecia ser um fato novo no país. Muitos prefeririam que tais informações fossem excluídas do debate público. Significativa a este respeito a resposta de um líder empresarial ao pesquisador que lhe submetera projeto de estudo sobre a reação dos trabalhadores em relação às horas de trabalho: “Meu amigo, certas coisas a gente não precisa saber”.

Sob esse tipo de reação dormitava certa lógica própria à cultura do país. Os suíços, tidos como discretos, são também bons marqueteiros na construção da própria imagem. Como se precisa do olho da pesquisa para discernir essas coisas, eles tiram proveito da cegueira geral para generalizar mundo afora uma imagem que lhes é favorável.  Assim      conseguiram conquistar a confiança de variada clientela e realizar excelentes transações em setores onde a discrição e a exatidão constituem a alma do negócio: depósitos bancários, seguros de toda sorte, relógios, aparelhos de precisão e muitos outros artefatos confeccionados à base de pouca matéria prima e elevado índice de trabalho, tecnologia e disciplina.

Ao longo do tempo, o país viveu períodos de prosperidade caracterizada pelo pleno emprego. As fronteiras se abriram a milhares de trabalhadores mediterrâneos, que têm contribuído para renovar e ampliar a infra-estrutura de estradas, ferrovias, distritos industriais, rede escolar e hospitalar, assim como escavar túneis, construir centros comerciais e conjuntos habitacionais.
Um sentimento de auto-suficiência blindava na população a idéia de que o bem-estar coletivo se devia ao próprio esforço e seus frutos eram, por assim dizer, irreversíveis. Não se considerava que a prosperidade nacional se relacionava, em estreita interdependência, ao fluxo de recursos originados de outros países.

Um fim de semana em contato com suíços de várias tendências não foi suficiente para perceber até que ponto estava havendo mudança na realidade do país e na convicção das pessoas ou se se tratava de algo meramente conjuntural. Podia-se, porém, constatar que a crise econômica e cultural presentes na Europa ameaçavam os Alpes. O desemprego estava atingindo o país ao índice crítico de 5%. A desigualdade de renda estava crescendo desde a virada de 1980. O desempenho e o lucro das empresas não se estavam traduzindo em novas oportunidades de trabalho, mas em engorda do capital, com inevitável concentração da riqueza. A inflação seguia sua marcha silenciosa, enquanto as taxas hipotecárias, em contraste com a tradição, vinham aumentando. Já começava a se tornar difícil a aquisição da casa própria, em conseqüência do impacto da crise sobre o setor da construção civil.

Nas conversas, as pessoas insistiam na idéia de ser preciso preparar-se para enfrentar os novos tempos. Citavam projetos tecnológicos nunca dantes imaginados, mas reconheciam ser preciso proceder a uma leitura cuidadosa das novas circunstâncias internacionais e preocupar-se seriamente com o vírus recém-descoberto da desigualdade e da exclusão, que ameaçava corroer internamente o tecido social e fragilizar a auto-imagem fabricada ao longo da história.

Naquele ano de 1994, enquanto as estatísticas expunham dados que preocupavam parte da opinião pública, o país continuava mantendo suas características tradicionais. Podia-se ouvir as pessoas se dizerem “bom dia” em cada esquina; os trens partiam e chegavam na hora; os compromissos eram cumpridos à risca. As cidades invadiam o campo sem destruir a atmosfera rural. Em alguns pontos, mal se percebiam os limites entre conjuntos habitacionais e uma fazenda, ou entre esta e uma fábrica. Dava para captar o desejo, que me foi familiar quando lá vivi, de que a vida se harmonizasse em verdadeiro equilíbrio ecológico. Foi gratificante reviver a experiência de que ainda era possível ver as vacas pastando à vontade na proximidade dos homens e das máquinas. Até quando?
        

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