NA RUA E NO CÁRCERE

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data quinta-feira, 26 de maio de 2011 0 comentários


Estamos no mês de julho de 1993. De repente, ressurgem, do fundo da consciência nacional, vozes de emoção e revolta. Desta vez, contra a ceifa noturna de crianças, à porta de uma igreja famosa no Rio de Janeiro, a Candelária.  Chacina abominável, retorno à barbárie são palavras ditas por aqueles que, em momentos como este, sobem ao palco para falar em nome do sentimento coletivo. Um âncora de televisão, em São Paulo, retira do baú o chavão usado, algum tempo atrás, contra o trucidamento de homens encarcerados no Carandiru, em São Paulo: uma vergonha.

Enquanto isso, a mídia continua a servir a dose diária de sequestro, linchamento, guerra de dossiês e velório “político” da imagem de outrem. E a cobrar sangue e algo mais: leis mais duras, punições mais severas. Enquanto isso, o tempo corre e a roda gira a ranger novos distúrbios, a inflacionar a moeda, a corroer valores éticos e morais, a bulir com as coisas simples da vida.

A verdade é que não há distanciamento entre o átrio da Candelária, e os corredores do Carandiru. No chão ensanguentado de ambos, e em nossa memória, jazem bem mais de cem corpos amontoados em cenas que se imaginou serem as últimas. Mas nunca são as últimas. Sua reprodução é constante, como se os meninos da Candelária fossem simbolicamente os filhos dos adultos do Carandiru.

Ou, melhor dizendo, os filhos de todos nós, produtos de nossas muitas reações emocionais e de nossa pouca ação efetiva marcada por começo, meio e fim. Nossas janelas se abrem para o grito da raiva, enquanto nossas portas se fecham ao gesto de acolher e assumir. É o caso de perguntar: por que estavam fechadas as portas da igreja a impedirem a entrada das crianças que dormiam do lado de fora? Por que não se abriram as portas do Carandiru - o que teria, quem sabe, permitido a saída dos presos e evitado o massacre?
O massacre não é apenas o apagar cego da vida. É um ato absurdo e inútil. Dele, nada se aprende. Nenhuma lição se pode tirar do ocorrido no Rio e São Paulo. A não ser a lição de que a roda e o tempo de ontem e de hoje continuam ziguezagueando no rumo incerto de amanhã.

Lembro-me de que em 1991, na antevéspera do dia da criança, o UNICEF promovera, em Brasília, uma reunião focada na crescente fragilização humana e social da sociedade brasileira em enfrentar a violência e fazer da qualidade da educação um meio capaz de moldar o caráter das crianças e alimentar, de igualdade e cidadania, o perfil de seus genitores.
À reunião foram convidados cerca de 20 formadores de opinião (ministros, o procurador geral da República, parlamentares, jornalistas, empresários, sindicalistas...). Tratava-se de envolver pessoas carismáticas na formulação de propostas exeqüíveis. Naquele momento, duas personalidades – cada uma em seu campo específico de atuação – foram destacadas: Dom Luciano Mendes de Almeida, presidente da CNBB e o ex-governador do Ceará, Tasso Jereissati.

Tasso, pela determinação com que, durante seu mandato, valorizara ações básicas em favor das crianças, desenvolvidas no contexto social de suas comunidades. Dom Luciano, por toda uma vida a testemunhar que “só a mudança radical de mentalidade na sociedade brasileira, em relação à pobreza e à exclusão, levaria à adoção de uma ação política de grande envergadura capaz de encarnar, em termos práticos, a valorização dos excluídos e de inaugurar uma nova etapa de humanidade”.

Ao sociólogo Herbert de Souza (o Betinho), presente à reunião, coube afirmar que “uma criança em estado de privação envolve problemas graves para pelo menos mais duas pessoas: o pai e a mãe”.   É o entrelaçamento desses problemas e sua permanência de geração em geração que perenizam a desigualdade. E, em permanecendo esta última, perduram também a dificuldade e a urgência de enfrentar as condições das crianças soltas na rua e dos adultos presos nos cárceres.



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