A FRANÇA ENTRE A DÚVIDA E A ESPERANÇA

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data terça-feira, 26 de abril de 2011 0 comentários



Voltar à França, bom tempo depois, neste mês de abril de 1994, não é coisa que se faça sem estar sujeito  a pagar o preço de alguma nostalgia. Que fazer? Ficar sentado à mesa do bistrô, os olhos tendidos  para a  fachada de Notre-Dame, aquela “a que os anos reuniram séculos numa postura de coisa no lugar?” Permanecer reflexivo diante da árvore mais antiga de Paris, no pátio aconchegante de São Julian, o pobre? Ou retomar a caminhada, diluindo lembranças entre a pirâmide do Louvre renovado e, de novo, a fachada de Notre-Dame em recuperação? Retalhos de versos voltam à memória: “Ar de Paris/ o olhar em Notre-Dame/  Notre-Dame em nosso olhar e a pergunta no ar:/ parar sozinho, por quê/ andar sozinho, por quê/ nesta postura de coisa sem lugar?”
    
Foi mais sensato  apelar aos amigos, os bons velhos amigos. Eles atendem pressurosos ao telefone. Nada mudou: o mesmo tom de voz cordial, o mesmo interesse em um reencontro o mais depressa possível. Depois os reencontros. E a constatação de que algo mudou. A marca do tempo: o corpo algo pesado, o branqueamento do cabelo, as rugas não disfarçadas. E a sentença também  sem disfarce: ” Hélas, l’ami, c’est  la vie”. É a vida...
    
Sim, seria apenas  a vida, não fosse a notícia dos que partiram. Em conversa na  casa da belga Teresa Clayes, à rua Du-Fer-à-Moulin, quatro nomes são lembrados. Nenhum se foi por mera questão de idade, como se alega às vezes. Todos sucumbiram ao capricho da malvada que ceifa indistintamente no roçado dos vivos. Claude Picard partiu cedo, Henri Poulizac também. Sobre ambos muito haveria, muito haverá a dizer. Aqui falo de Michel, cuja morte me pareceu  fora de hora. Homem dos sete instrumentos, era um filósofo, um  poeta, um factótum. Possuído de uma consciência, misto de  cristã e camusiana, sabia, como ninguém, administrar a alegria e as dúvidas dos  amigos, bastando para tanto a companhia de um pedaço de pão, um pouco de queijo, um copo de vinho.
Mas chega de saudade. É preciso voltar às coisas do dia. Uma amiga francesa e seu amigo uruguaio fornecem o mote que resume o estado atual do País: “Mais uma vez, a França se interroga”. Visceralmente partida entre a razão e a dúvida, as realizações coletivas e a introspecção, o espírito de grandeza e a pequenez de atitudes, a cada tremor da realidade, a pátria de Mitterrand e Chirac sente-se insegura quanto ao passado recente e hesita em face do próximo futuro.
Um levante de secundaristas no início do ano fez recuar o governo Balladur e sua “proposta indecente” de um “simulacro de salário” para jovens que se iniciam no trabalho. O evento não teve a conotação das manifestações de maio de 68. Em 1968, havia forte apelo ideológico. Levantaram-se barricadas porque se sonhava com a transformação radical do quadro de vida e da própria vida. As razões que levaram os jovens à rua este ano, sobretudo nas cidades do interior, são de natureza pragmática. A moçada não pensa em mudar a vida, mas de vida. A inserção no sistema, a que aspiram, chama-se prosaicamente “garantia de emprego”.
O desemprego preocupa. Cerca de 12% da força de trabalho, ou seja, 3.5 milhões de pessoas,  estão desocupadas. Os consumidores evitam comprar, os empresários se negam a investir. O fantasma da recessão ameaça, e já se vêem pessoas de certo nível que fazem biscate, vendendo no metrô “Le Reverbère”, um jornal dos sem-teto e sem-emprego. Ao que se diz, inúmeras  maneiras criativas de sobrevivência prosperam país afora. Os economistas  falam de crise conjuntural, associada a freios de arrumação no processo de consolidação da Europa.
Nem tudo é claro. E na semi-obscuridade, porque não gritar? Os primeiros a fazê-lo, são mais uma vez, os jovens. Estes ouviram dos pais que a aventura histórica de que foram protagonistas em 68 havia transformado a França. Mas os filhos se perguntam: “que transformação foi essa que não aterrissa no chão do cotidiano sob a forma de emprego e  salário”? Os jovens de 68 não sabem o que responder aos filhos em 1994.
Daí que mais uma vez a França se interroga. E curiosamente, nestes dias de inquietação individual  e  rebusca de saída coletiva, volta a ecoar no país uma voz solitária que, sem jamais ter sumido, andava um tanto abafada. É a voz de Albert Camus, autor de A Peste, o Miro de Sísifo, Calígula, este último representado recentemente no Teatro José de Alencar  de Fortaleza. Pois bem. Acaba de ser lançado em Paris – 34 anos depois da morte de Camus, em acidente de carro, aos 4 de janeiro de 1960 – o livro póstumo O Primeiro Homem, cujo manuscrito fora encontrado na pasta junto a seu corpo.
No livro, Camus foge ao habitual estilo contido, um tanto distanciado da beleza formal, para dar vida e sangue às emoções do cotidiano. Sua intenção era de recuperar a memória do pai, mas a obra termina contando a  história da mãe e o filho, dois seres ligados “por um mesmo sangue e todas as diferenças”. O livro, inacabado, está sendo recebido com grande entusiasmo e vendido aos milhares. Não se trata de mera coincidência. Se não me engano, neste momento de perplexidade, há muita gente lembrando que Camus soube como poucos encarnar a dúvida francesa de todos os tempos, e, na dúvida, retomar a questão do engajamento e do recomeço. Ou seja, da esperança.

Fonte da Imagem: Site Destinos de Viagem

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