O VELHO E A VIDA

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data segunda-feira, 25 de julho de 2011 0 comentários


Sol escaldante, carrasco agressivo. Árvores ressequidas, sem serventia de sombra. Viajo com Edgar Linhares – então membro do Conselho de Educação, hoje seu presidente – neste ano de  1992. Ou 1993?  Visitamos   escolas em alguns municípios da zona  noroeste do estado. É um período de seca, e, para ser sincero, não pretendemos apenas levantar  dados numéricos de nossa educação. Buscamos também perscrutar as condições concretas de sobrevivência de famílias que mandam, ou não, seus filhos à escola.

Numa dobra da estrada carroçável, damos com a casa de tijolo, entregue ao fardo dos anos e exposta ao rigor de meses inteiriços sem chuva. Ao redor da casa, nada. Nada de vida vegetal ou animal: um cachorro, uma galinha, um porco sequer. Nem um mamoeiro, um pé de limão, um cróton que seja. O mormaço do sol e o silêncio da vida envolvem a paisagem. Esta é a casa, imaginei. E Edgar deve ter proposto: vamos parar. Batemos palma, e vem à porta o homem idoso. É uma pessoa pacata que sinaliza um gesto acolhedor.

O homem não está só. Do interior da casa, aparecem a esposa, duas filhas e um neto. As filhas moram com seus companheiros no povoado, distante meia légua. Os maridos estão desempregados. Melhor dizendo, um deles ficou sem trabalho há dois meses, quando findou a recuperação da estrada estadual. O outro, de 22 anos, não tem trabalho fixo, nem a família pode acreditar quando alega que ganha alguns trocados  no jogo, em dias de feira. O velho se pergunta como pode viver do jogo alguém que não tem como bancar uma perda. E como pode ganhar, se não tem o que apostar? As mulheres vieram passar o dia com os pais. Os rapazes ficaram no povoado. A mulher mais jovem, de 17 anos, está grávida.

Na sala da casa, um pote caquético, a propaganda eleitoral de um candidato, dois tamboretes, duas latas grandes, uma caixa de papelão contendo alguma roupa, lençol, rede. Na cozinha, um fogão meio morto, uns raros utensílios. Um pouco de arroz num alguidar, um pedaço de toucinho pendente de um caibro. O cheiro de antiga fartura tornada fome. O vazio da casa ecoa a pergunta tantas vezes repetida ao longo dessa viagem no coração da seca cearense. Como sobreviver e dar continuidade à espécie em circunstância de tamanha aridez?

Como suportar, dia após dia,  o peso de imaginar, a cada manhã, a comida do almoço, e no almoço, a comida do jantar? Como situar, no tempo urgente do indispensável, o espaço necessário ao sonho, ao lazer, ao afeto? Com que amplidão de abraço acolher a vida quando nascer a criança esperada pela filha mais nova? Como celebrar devidamente a morte, quando morrer o homem idoso ou a sua esposa? É um caminho duvidoso esse caminho da seca no sertão do Ceará.

A pergunta é dirigida sem maior cerimônia aos familiares. E estes respondem a tudo com honrosa espontaneidade. O pai é aposentado do funrural. Um dos filhos se foi para Brasília, e outro vive em Fortaleza. Os dois têm suas famílias, mesmo assim enviam aos pais esporadicamente algum dinheiro, uma roupa, um remédio. Mas, diz o homem, o funrural é o alicerce, o mais seguro, embora ameaçado mensalmente pela inflação. É pena, comenta, que a patroa não tenha ainda conseguido o seu “aposento”.

O isolamento não alienou o homem idoso. É relativamente informado do que ocorre no município, no estado, no país. Diz com palavras simples aquilo que os economistas explanam com o aparato útil da estatística. Que em três anos de seca a terra do Ceará se desnuda a olhos vistos. Que a erosão e o assoreamento reduzem o tempo de vida das águas. Que a safra de alimentos nestes dias é, cada ano, menor.

É um cidadão que consegue, a seu jeito,  administrar a solidariedade no quadro de acertos e desacertos dos familiares. Como pequeno produtor rural, encarna as privações de outras famílias.  Sente a falta de uma organização que lhes permita resolver a complexa equação da vida coletiva. Acompanha a seu modo as reivindicações dos trabalhadores rurais e as promessas dos homens lá de cima. Mas os homens, de Fortaleza e Brasília, é tudo distante, pensa ele. Não sabem   desencadear uma ação de envergadura, consistente e continuada.

O velho tem uma fórmula matreira de caracterizar a administração pública municipal: “ O novo prefeito mal chegou e já quer desmanchar o que o outro não fez”. Ri da própria tirada. Um riso cético de quem não espera, mas tampouco desespera. Um riso pacato de quem observa o dia reproduzir o dia na ordem abstrata das coisas impostas. Enquanto observa, a força da vida age em suas entranhas. Ele dirige o olhar  para o oeste, onde se divisa o contorno entristecido dos contrafortes da Serra Grande.

É de lá, arremata ele, que vem a chuva. Quando vem.


NA RUA E NO CÁRCERE

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data quinta-feira, 26 de maio de 2011 0 comentários



Estamos no mês de julho de 1993. De repente, ressurgem, do fundo da consciência nacional, vozes de emoção e revolta. Desta vez, contra a ceifa noturna de crianças, à porta de uma igreja famosa no Rio de Janeiro, a Candelária.  Chacina abominável, retorno à barbárie são palavras ditas por aqueles que, em momentos como este, sobem ao palco para falar em nome do sentimento coletivo. Um âncora de televisão, em São Paulo, retira do baú o chavão usado, algum tempo atrás, contra o trucidamento de homens encarcerados no Carandiru, em São Paulo: uma vergonha.

Enquanto isso, a mídia continua a servir a dose diária de sequestro, linchamento, guerra de dossiês e velório “político” da imagem de outrem. E a cobrar sangue e algo mais: leis mais duras, punições mais severas. Enquanto isso, o tempo corre e a roda gira a ranger novos distúrbios, a inflacionar a moeda, a corroer valores éticos e morais, a bulir com as coisas simples da vida.

A verdade é que não há distanciamento entre o átrio da Candelária, e os corredores do Carandiru. No chão ensanguentado de ambos, e em nossa memória, jazem bem mais de cem corpos amontoados em cenas que se imaginou serem as últimas. Mas nunca são as últimas. Sua reprodução é constante, como se os meninos da Candelária fossem simbolicamente os filhos dos adultos do Carandiru.

Ou, melhor dizendo, os filhos de todos nós, produtos de nossas muitas reações emocionais e de nossa pouca ação efetiva marcada por começo, meio e fim. Nossas janelas se abrem para o grito da raiva, enquanto nossas portas se fecham ao gesto de acolher e assumir. É o caso de perguntar: por que estavam fechadas as portas da igreja a impedirem a entrada das crianças que dormiam do lado de fora? Por que não se abriram as portas do Carandiru - o que teria, quem sabe, permitido a saída dos presos e evitado o massacre?
O massacre não é apenas o apagar cego da vida. É um ato absurdo e inútil. Dele, nada se aprende. Nenhuma lição se pode tirar do ocorrido no Rio e São Paulo. A não ser a lição de que a roda e o tempo de ontem e de hoje continuam ziguezagueando no rumo incerto de amanhã.

Lembro-me de que em 1991, na antevéspera do dia da criança, o UNICEF promovera, em Brasília, uma reunião focada na crescente fragilização humana e social da sociedade brasileira em enfrentar a violência e fazer da qualidade da educação um meio capaz de moldar o caráter das crianças e alimentar, de igualdade e cidadania, o perfil de seus genitores.
À reunião foram convidados cerca de 20 formadores de opinião (ministros, o procurador geral da República, parlamentares, jornalistas, empresários, sindicalistas...). Tratava-se de envolver pessoas carismáticas na formulação de propostas exeqüíveis. Naquele momento, duas personalidades – cada uma em seu campo específico de atuação – foram destacadas: Dom Luciano Mendes de Almeida, presidente da CNBB e o ex-governador do Ceará, Tasso Jereissati.

Tasso, pela determinação com que, durante seu mandato, valorizara ações básicas em favor das crianças, desenvolvidas no contexto social de suas comunidades. Dom Luciano, por toda uma vida a testemunhar que “só a mudança radical de mentalidade na sociedade brasileira, em relação à pobreza e à exclusão, levaria à adoção de uma ação política de grande envergadura capaz de encarnar, em termos práticos, a valorização dos excluídos e de inaugurar uma nova etapa de humanidade”.

Ao sociólogo Herbert de Souza (o Betinho), presente à reunião, coube afirmar que “uma criança em estado de privação envolve problemas graves para pelo menos mais duas pessoas: o pai e a mãe”.   É o entrelaçamento desses problemas e sua permanência de geração em geração que perenizam a desigualdade. E, em permanecendo esta última, perduram também a dificuldade e a urgência de enfrentar as condições das crianças soltas na rua e dos adultos presos nos cárceres.




OS DIAS EM QUE A SUÍÇA DESCOBRIU A DESIGUALDADE

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data 0 comentários


Foi no finalzinho de abril, uns três dias antes do acidente fatal que encerrou a carreira de Ayrton Senna no autódromo Enzo e Dino Ferrari, em Ímola, durante o Grande Prêmio de San Marino em 1º de maio de 1994.

Encontrava-me com familiares na França, convidado que fora para uma temporada de estudo no Instituto Internacional de Planejamento da Educação, vinculado à UNESCO. O feriado prolongado possibilitou o retorno à cidade universitária de Friburgo, na Suíça, onde vivi nos anos 70, para rever alguns conhecidos e encher os olhos com a paisagem das montanhas, a ponte sobre o rio Zähringen, o bairro Shönberg, os relógios, as vacas, o castelo e a fondue de Gruyères.

Membros das famílias Wassmer e Morard logo nos anteciparam a notícia, confirmada por Ramon Sugranyes e outros, de que parte da população se sentia chocada com a descoberta de que em cada grupo de cem trabalhadores de tempo integral, onze estavam ganhando apenas mil francos por mês, equivalentes então a 740 dólares. Essa remuneração, em muitos países, seria um sonho. Mas lá, para os onze por cento em causa, parecia ser a irrupção do fantasma degradante da desigualdade num país com salário médio nacional de quatro mil francos, ou 2960 dólares, em valores do tempo.

A informação constava de recente levantamento sobre a estratificação social do país, ou da diferenciação econômica, política e cultural entre camadas da população. Esta passava, a saber, por exemplo, que o filho de pai com diploma superior tinha 50 vezes mais chance de entrar na universidade do que a filha de um pai que não fora além dos estudos primários. Em Genebra, os esforços empreendidos para ampliar o tempo de escolaridade não tinham conseguido impedir o aumento da repetência e a disparidade de acesso aos estudos de longa duração. O fenômeno atingia, sobretudo, os filhos de operários, estrangeiros ou não.     

Em tempo de pleno emprego, essa constatação parecia ser um fato novo no país. Muitos prefeririam que tais informações fossem excluídas do debate público. Significativa a este respeito a resposta de um líder empresarial ao pesquisador que lhe submetera projeto de estudo sobre a reação dos trabalhadores em relação às horas de trabalho: “Meu amigo, certas coisas a gente não precisa saber”.

Sob esse tipo de reação dormitava certa lógica própria à cultura do país. Os suíços, tidos como discretos, são também bons marqueteiros na construção da própria imagem. Como se precisa do olho da pesquisa para discernir essas coisas, eles tiram proveito da cegueira geral para generalizar mundo afora uma imagem que lhes é favorável.  Assim      conseguiram conquistar a confiança de variada clientela e realizar excelentes transações em setores onde a discrição e a exatidão constituem a alma do negócio: depósitos bancários, seguros de toda sorte, relógios, aparelhos de precisão e muitos outros artefatos confeccionados à base de pouca matéria prima e elevado índice de trabalho, tecnologia e disciplina.

Ao longo do tempo, o país viveu períodos de prosperidade caracterizada pelo pleno emprego. As fronteiras se abriram a milhares de trabalhadores mediterrâneos, que têm contribuído para renovar e ampliar a infra-estrutura de estradas, ferrovias, distritos industriais, rede escolar e hospitalar, assim como escavar túneis, construir centros comerciais e conjuntos habitacionais.
Um sentimento de auto-suficiência blindava na população a idéia de que o bem-estar coletivo se devia ao próprio esforço e seus frutos eram, por assim dizer, irreversíveis. Não se considerava que a prosperidade nacional se relacionava, em estreita interdependência, ao fluxo de recursos originados de outros países.

Um fim de semana em contato com suíços de várias tendências não foi suficiente para perceber até que ponto estava havendo mudança na realidade do país e na convicção das pessoas ou se se tratava de algo meramente conjuntural. Podia-se, porém, constatar que a crise econômica e cultural presentes na Europa ameaçavam os Alpes. O desemprego estava atingindo o país ao índice crítico de 5%. A desigualdade de renda estava crescendo desde a virada de 1980. O desempenho e o lucro das empresas não se estavam traduzindo em novas oportunidades de trabalho, mas em engorda do capital, com inevitável concentração da riqueza. A inflação seguia sua marcha silenciosa, enquanto as taxas hipotecárias, em contraste com a tradição, vinham aumentando. Já começava a se tornar difícil a aquisição da casa própria, em conseqüência do impacto da crise sobre o setor da construção civil.

Nas conversas, as pessoas insistiam na idéia de ser preciso preparar-se para enfrentar os novos tempos. Citavam projetos tecnológicos nunca dantes imaginados, mas reconheciam ser preciso proceder a uma leitura cuidadosa das novas circunstâncias internacionais e preocupar-se seriamente com o vírus recém-descoberto da desigualdade e da exclusão, que ameaçava corroer internamente o tecido social e fragilizar a auto-imagem fabricada ao longo da história.

Naquele ano de 1994, enquanto as estatísticas expunham dados que preocupavam parte da opinião pública, o país continuava mantendo suas características tradicionais. Podia-se ouvir as pessoas se dizerem “bom dia” em cada esquina; os trens partiam e chegavam na hora; os compromissos eram cumpridos à risca. As cidades invadiam o campo sem destruir a atmosfera rural. Em alguns pontos, mal se percebiam os limites entre conjuntos habitacionais e uma fazenda, ou entre esta e uma fábrica. Dava para captar o desejo, que me foi familiar quando lá vivi, de que a vida se harmonizasse em verdadeiro equilíbrio ecológico. Foi gratificante reviver a experiência de que ainda era possível ver as vacas pastando à vontade na proximidade dos homens e das máquinas. Até quando?
        


A FRANÇA ENTRE A DÚVIDA E A ESPERANÇA

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data terça-feira, 26 de abril de 2011 0 comentários




Voltar à França, bom tempo depois, neste mês de abril de 1994, não é coisa que se faça sem estar sujeito  a pagar o preço de alguma nostalgia. Que fazer? Ficar sentado à mesa do bistrô, os olhos tendidos  para a  fachada de Notre-Dame, aquela “a que os anos reuniram séculos numa postura de coisa no lugar?” Permanecer reflexivo diante da árvore mais antiga de Paris, no pátio aconchegante de São Julian, o pobre? Ou retomar a caminhada, diluindo lembranças entre a pirâmide do Louvre renovado e, de novo, a fachada de Notre-Dame em recuperação? Retalhos de versos voltam à memória: “Ar de Paris/ o olhar em Notre-Dame/  Notre-Dame em nosso olhar e a pergunta no ar:/ parar sozinho, por quê/ andar sozinho, por quê/ nesta postura de coisa sem lugar?”
    
Foi mais sensato  apelar aos amigos, os bons velhos amigos. Eles atendem pressurosos ao telefone. Nada mudou: o mesmo tom de voz cordial, o mesmo interesse em um reencontro o mais depressa possível. Depois os reencontros. E a constatação de que algo mudou. A marca do tempo: o corpo algo pesado, o branqueamento do cabelo, as rugas não disfarçadas. E a sentença também  sem disfarce: ” Hélas, l’ami, c’est  la vie”. É a vida...
    
Sim, seria apenas  a vida, não fosse a notícia dos que partiram. Em conversa na  casa da belga Teresa Clayes, à rua Du-Fer-à-Moulin, quatro nomes são lembrados. Nenhum se foi por mera questão de idade, como se alega às vezes. Todos sucumbiram ao capricho da malvada que ceifa indistintamente no roçado dos vivos. Claude Picard partiu cedo, Henri Poulizac também. Sobre ambos muito haveria, muito haverá a dizer. Aqui falo de Michel, cuja morte me pareceu  fora de hora. Homem dos sete instrumentos, era um filósofo, um  poeta, um factótum. Possuído de uma consciência, misto de  cristã e camusiana, sabia, como ninguém, administrar a alegria e as dúvidas dos  amigos, bastando para tanto a companhia de um pedaço de pão, um pouco de queijo, um copo de vinho.
Mas chega de saudade. É preciso voltar às coisas do dia. Uma amiga francesa e seu amigo uruguaio fornecem o mote que resume o estado atual do País: “Mais uma vez, a França se interroga”. Visceralmente partida entre a razão e a dúvida, as realizações coletivas e a introspecção, o espírito de grandeza e a pequenez de atitudes, a cada tremor da realidade, a pátria de Mitterrand e Chirac sente-se insegura quanto ao passado recente e hesita em face do próximo futuro.
Um levante de secundaristas no início do ano fez recuar o governo Balladur e sua “proposta indecente” de um “simulacro de salário” para jovens que se iniciam no trabalho. O evento não teve a conotação das manifestações de maio de 68. Em 1968, havia forte apelo ideológico. Levantaram-se barricadas porque se sonhava com a transformação radical do quadro de vida e da própria vida. As razões que levaram os jovens à rua este ano, sobretudo nas cidades do interior, são de natureza pragmática. A moçada não pensa em mudar a vida, mas de vida. A inserção no sistema, a que aspiram, chama-se prosaicamente “garantia de emprego”.
O desemprego preocupa. Cerca de 12% da força de trabalho, ou seja, 3.5 milhões de pessoas,  estão desocupadas. Os consumidores evitam comprar, os empresários se negam a investir. O fantasma da recessão ameaça, e já se vêem pessoas de certo nível que fazem biscate, vendendo no metrô “Le Reverbère”, um jornal dos sem-teto e sem-emprego. Ao que se diz, inúmeras  maneiras criativas de sobrevivência prosperam país afora. Os economistas  falam de crise conjuntural, associada a freios de arrumação no processo de consolidação da Europa.
Nem tudo é claro. E na semi-obscuridade, porque não gritar? Os primeiros a fazê-lo, são mais uma vez, os jovens. Estes ouviram dos pais que a aventura histórica de que foram protagonistas em 68 havia transformado a França. Mas os filhos se perguntam: “que transformação foi essa que não aterrissa no chão do cotidiano sob a forma de emprego e  salário”? Os jovens de 68 não sabem o que responder aos filhos em 1994.
Daí que mais uma vez a França se interroga. E curiosamente, nestes dias de inquietação individual  e  rebusca de saída coletiva, volta a ecoar no país uma voz solitária que, sem jamais ter sumido, andava um tanto abafada. É a voz de Albert Camus, autor de A Peste, o Miro de Sísifo, Calígula, este último representado recentemente no Teatro José de Alencar  de Fortaleza. Pois bem. Acaba de ser lançado em Paris – 34 anos depois da morte de Camus, em acidente de carro, aos 4 de janeiro de 1960 – o livro póstumo O Primeiro Homem, cujo manuscrito fora encontrado na pasta junto a seu corpo.
No livro, Camus foge ao habitual estilo contido, um tanto distanciado da beleza formal, para dar vida e sangue às emoções do cotidiano. Sua intenção era de recuperar a memória do pai, mas a obra termina contando a  história da mãe e o filho, dois seres ligados “por um mesmo sangue e todas as diferenças”. O livro, inacabado, está sendo recebido com grande entusiasmo e vendido aos milhares. Não se trata de mera coincidência. Se não me engano, neste momento de perplexidade, há muita gente lembrando que Camus soube como poucos encarnar a dúvida francesa de todos os tempos, e, na dúvida, retomar a questão do engajamento e do recomeço. Ou seja, da esperança.

Fonte da Imagem: Site Destinos de Viagem


PEREGRINAÇÃO DE PÁSCOA

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data segunda-feira, 18 de abril de 2011 0 comentários


Basílica de São Pedro - Roma

São Pedro
 – Roma

São Pedro: o guarda suíço
fez continência entrei
anjos descendo no tempo
sem restrição do espaço
e a glória de Bernini
sujeita aos truques do sol

Basílica de São Francisco - Assis

São Francisco
 – Assis 

Pôr-do-sol visto da Rocca
dita Maggiore em Assis
mil anos de minha vida
por um momento de novo
na igreja do Hino ao Sol
São Damião simplesinha.


Mosteiro de São Bento - Subiaco



São Bento
Subiaco

Entretanto Subiaco
oração paz e labor
a roseira no jardim
florindo para o louvor
da vida por descobrir
na capela de São Bento
tremia a lâmpada insone
do Santíssimo Sacramento
tão maior a sua luz
quão menor a luz do dia.


Minha pouca luz do dia. 


JOÃO - PE. JOÃO

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data sexta-feira, 8 de abril de 2011 0 comentários


 Fim de tarde em Sobral, à margem esquerda do rio Acaraú. O encontro acontece em um restaurante a céu aberto, junto à plácida igrejinha de Nossa Senhora das Dores. Dali é possível divisar a massa líquida do rio deslizando mansamente em direção à noite que se aproxima. Preside a mesa o padre João Batista Frota. Clientes vêm até ele e lhe estendem a mão.  Ninguém fica indiferente à sua presença, à sua pessoa.

Chovera forte na região, dias antes. As águas deixaram marca de sua passagem nas duas margens do rio. À esquerda, houve algum desconforto, mas não danos irreparáveis às obras que embelezam o lado nobre da cidade. Os estragos mais graves ocorreram à margem direita, lá onde vive boa parte da população pobre; lá onde, durante as chuvas, se fez presente o padre João com uma palavra de alento, sua mão de apoio e a bênção solidária.

Agora, aqui está ele. Sua figura aparentemente frágil desperta a atenção pelo modo como escuta os outros, pelo cuidado com que pastora os comensais: “água? Um pouco de vinho? Sirva-se mais, você está comendo pouco”. De sua atitude, algo desborda e atrai que não é fácil descrever. Quem é o padre João? Um contemplativo que olha atento o que está perto, na busca de perscrutar o que se encontra além? Um solitário que jamais se esquiva ao encontro de quem quer que avoque a sua presença? Alguém que enxerga o bem, sem enceguecer perante o mal? Um político suave e firme a quem repugna a fria hipocrisia das habituais práticas eleitoreiras? Um ser humano que persegue metas elevadas movido pela luz de uma fé tranqüila, pela força humilde da esperança, pelo sentido da urgência em construir, passo a passo, o bem comum?

Mas quem é o padre João? Será que ele mesmo sabe? Será que não assume essa atitude de suave e paciente escuta na tentativa de apreender, nas perguntas que lhe são dirigidas, os componentes íntimos reveladores de sua personalidade? Jesus de Nazaré, a quem João se sente particularmente ligado, deu exemplo de procedimento algo similar. Pois não seria outro, à primeira vista pelo menos, o sentido de uma conversa de Jesus com seus discípulos, registrada no evangelho de São Mateus e repetida de forma abreviada nos textos de Marcos e Lucas. Retomemos, então, o capítulo 16 de Mateus, lá onde se descreve a confissão de Pedro, texto aqui reproduzido em versão bastante livre.

Ao chegar numa das aldeias de Cesaréia de Felipe, Jesus perguntou aos que o acompanhavam: “e aí, amigos, o que é que o pessoal anda falando sobre o Filho do homem? Quem acham que ele é?” E os discípulos responderam: “Bom, uns dizem que é João Batista, outros falam de Elias; alguém lembrou Jeremias, e outros citaram outros profetas”. E Jesus: “e vocês, o que é que vocês pensam”? Enquanto alguns se perguntavam o que responder, Pedro, sempre impulsivo, partiu ao ataque: “ora, não tem outra não, você é o Filho de Deus vivo”. O diálogo de Jesus com seus discípulos expressa um método de abordagem familiar a Sócrates. Jesus sabe quem é. Mas, àquela altura de sua missão, quer que os discípulos assimilem o mistério com que haverão de lidar vida afora: Jesus, Filho do Homem, Jesus Filho de Deus.

E o padre João? A impressão que deixa é a de alguém que espera ouvir, das pessoas com que convive, palavras que o ajudem a consolidar o ideal a que se encontra preso desde que se doou ao amigo Jesus de Nazaré. Voltando, pois, às perguntas feitas há pouco, este escriba confessa singelamente não dispor de resposta pronta. E, por essa razão, decidiu sair por aí a perguntar a uns e a outras o que têm a dizer sobre o padre João e o que tem significado para cada um o contato com ele. As pessoas aceitam falar com facilidade. E como falam.
A título de intróito, ouçamos Glória Giovana Sabóia Mont’Alverne Girão, nome à altura da função que exerce em Sobral: a de diretora do Museu Dom José Tupinambá da Frota. Giovana traça o esboço de um retrato do padre João. Diz que ele não nasceu para si, mas para o serviço dos outros. Simples e humilde, é, ao mesmo tempo, dotado de extraordinária força interior, usada em favor dos desventurados, da conversão dos jovens, da propagação do evangelho. Sábio e humano, teve oportunidade de conviver com muitas culturas e assimilar, em experiências e trajetórias pelo mundo afora, sínteses de diferenças e semelhanças susceptíveis de aplicação crítica à realidade nordestina. Nele, a cidadania não é atitude passiva, mas ação permanente em favor de alguém ou de alguma causa de alcance coletivo. Sabe assumir com o povo a execução de tarefas, demonstrando poder de decisão sempre que necessário. Por onde tem passado, sua palavra é ouvida e respeitada, sua liderança jamais contestada.

Outra sobralense de nome comprido, Ada Pimentel Gomes Fernandes Vieira, mãe de família dedicada às lides educacionais no Ceará, seja como professora seja como gestora, lembra que conheceu o padre por intermédio de sua irmã Lísia. Ao encontrá-lo, teve um choque de empatia. Acha que, por ser uma pessoa alvoroçada, sentiu-se vencida pela serenidade do padre. Percebeu que se tratava de alguém simples, não simplório. Ada, apesar de católica, não seguia o padrão habitual da confissão. Mas, em decorrência desse encontro, na primeira oportunidade, mandou-se de Sobral para confessar-se com ele em Massapé, de onde padre João era pároco.

A partir de então passou a refletir sobre seus pecados sociais. Ela não é dessas pessoas que se chegam aos pobres porque é Natal. Embora nunca tenha deixado de ajudá-los, sempre resistiu à idéia de fazer ostentação de suas ajudas. Ocorre que as palavras do padre João avivaram nela a consciência de que fazia pelos pobres menos do que podia, embora não soubesse como fazer mais. Voltou de Massapé com a certeza de que o padre seria para ela não uma estrela, mas um referencial ético: suave, manso, grande, diferente de alguns membros do clero que lhe pareciam distantes, fosforescentes, sem calor humano e espiritual. Padre João, segundo Ada, não é uma pessoa encolhida. Freqüenta tranqüilamente qualquer meio social. Atua nos bastidores, sem alarido. Com a firmeza da rocha e a fluidez da água, tem o dom do mediador e do conciliador. Mediação e conciliação fortes, acreditadas.

Nereu Feix, cidadão gaucho, contemporâneo de João no Colégio Pio Brasileiro de Roma, vive hoje do ofício de tradutor oficial em Düdweiller/Saarbrücken-Alemanha. Numa das vindas ao Brasil, chegou até Sobral e teve a oportunidade de sair com o padre João a visitar bairros que muitos “fingem não ver”, sobretudo depois da inundação do Acaraú. Nereu impressiona-se com as casinhas de barro e o número de pobres subnutridos. Lembra que quanto mais se aproximava das pessoas, mais doíam em sua consciência europeizada os gritos “desesperados e esperançosos” de “padre João, padre João, padre João”. Percorreu Sobral no fusca do padre (placa HVX 6423, ano 1965) que de Wolkswagen, fica valendo simbolicamente apenas a tradução do alemão: carro do povo. Isso porque todos tratam o fusquinha como se fosse o carro de todos.

Nereu dá um salto no tempo. Para trás. Revive o Domingo de Ramos, imagina que o fusca poderia bem ser a jumenta e o jumentinho da entrada de Jesus em Jerusalém, evoca os vendilhões do templo, rememora a metáfora da figueira amaldiçoada e a parábola dos dois filhos e a parábola da festa das bodas e ainda outras parábolas e volta ao tempo dos estudos em Roma e ao pensamento de que aquele seu contemporâneo, vivendo no celeiro de bispos e cardeais brasileiros, nunca foi amigo de pompas, de honras, de manifestações ruidosas, mundanas. Que, ao deixar Roma e se embrenhar na Palestina, João selara em sua convicção mais profunda a nítida opção pelos pobres e pelas causas que ajudam os pobres a participarem da luta pela superação da pobreza.

Escrevendo um dia sobre o padre João, de quem foi colega de estudos em Fortaleza e Roma, Lauro Motta, professor da UFC e do ITEP, afirmou que saíra do clero para casar-se, mas não saíra da Igreja, da qual só se afastaria quando tivesse de viajar para a casa do Pai. Lauro viajou antes de conceder a entrevista que dele se esperava para enriquecer os depoimentos destas páginas. Mas ele deixou pegadas muito nítidas ao longo de sua caminhada ao lado de um colega, de quem soube falar com a sensibilidade de um poeta afeito ao ensino da filosofia e à reflexão teológica.

Na percepção de Lauro, João se destaca por duas características de difícil coabitação numa mesma pessoa: a firmeza das convicções e a suavidade nas atitudes. João lhe ensinou a amar a Igreja, respeitar as consciências, sentir com o povo. “Ele nunca se encastelou no elevado saber da Gregoriana”. Ao se aventurar pelas terras longínquas da Palestina, não perdeu o jeito cearense de ser. “Parecia que tinha ido só ali, à esquina”...

Lauro viu em João o homem da práxis que traduz em ação a carga pesada da teoria; que doma a imaginação sedenta de irrealismo; que torna viável a utopia evangélica. Lauro também leu o livro de João intitulado “Construindo o amanhã” e nele constatou que em sua incursão no Oriente, João intenta não apenas conhecer aquele que inspirou seus pais a lhe darem o nome de João Batista, mas a concretizar o sonho de um possível “retorno de João Batista” para anunciar nos desertos do Nordeste um Novo Advento, para dizer aos que têm 10, 20, 50 camisas que há muitos quase despidos; para lembrar aos que estão se banqueteando que há migalhas caindo das mesas, e que há milhares a procurá-las nos restos depositados em lugares lúgubres pelos caminhões do lixo.

Lauro não aceitou o fato de o padre João não ter sido bispo, em virtude, em última análise, dos usos eclesiásticos que não levam em conta, na escolha dos candidatos, a participação dos padres e leigos da igreja local. A decisão fica engessada numa instância longínqua, não raro desconhecedora das reais necessidades regionais. Sem entrar em conflito com a hierarquia, ele dizia que assim como o papa tem os seus cardeais in pectore, também ele tinha in pectore os seus bispos. Entre estes, estava incluído o padre João Batista Frota então pároco do Patrocínio em Sobral.

Seja como for, bispo ou não, nada afetou o “jeito cearense de ser” do padre João, que Lauro encontrou em Sobral e assim descreveu: “Na paróquia, na universidade, na coordenação pastoral, nos trabalhos diocesanos, lá está aquele homem manso no falar e decidido no agir, poeta, filósofo, teólogo, sobretudo pastor e profeta, precursor autêntico de Deus, tanto na aridez de nossos desertos interiores, como na problemática complexa de nossas cidades”.

A opção de João pelos humildes impressiona pelo fato de não implicar no desprezo das pessoas de pertença social elevada, mesmo aquelas que estão longe de compartilhar os seus valores. O espanhol Dom Xavier, bispo de Tianguá, vai longe na percepção dessa atitude. A consistência da opção do padre João estaria enraizada em sua formação humanística, visto que só uma cultura filosófica sólida pode conferir fundamentação teológica consistente a uma pastoral sem preconceito.

O curso de filosofia é um curso de humanização, e, por isso, a Igreja não abre mão da formação filosófica de seus sacerdotes. Dom Xavier ressalta que algumas espiritualidades exaltadas minimizam a importância dos estudos humanísticos como se estes ameaçassem a identidade cristã. É um engano e uma pena porque “humanidade é humanidade”, que Deus não rejeita. Ao contrario, Deus a distinguiu quando o seu Filho assumiu a condição humana.

Esses testemunhos iniciais constituem uma indicação do quanto o padre João é percebido pelo olhar de seus contemporâneos como alguém que tem procurado assumir a condição humana (e desumana) de seus irmãos em Cristo. Por isso mesmo, é sempre indispensável ir além no acompanhamento de seus passos.
(07/04/2011)

Fonte da Imagem: Blog do Edílson


À SOMBRA DA CATEDRAL

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data 0 comentários

Catedral Imperial de Bamberg-Alemanha



25.06.1965. Início de verão muito calorento na Europa Central. Hoje peguei o trem em Estrasburgo, França, com destino a Bamberg na Baviera, Alemanha. Jean Rieux, colega canadense, ofereceu-se para me conduzir à estação. Roberto, amigo carioca, nos acompanhou. Conversamos no restaurante até a chegada do trem.             

Viagem terrível. Calor infernal. Lembrei-me de outra viagem em um trem da Rede Viação Cearense, entre Fortaleza e Recife. Também no Ceará fazia um calor intenso. Em Stuttgart, sobem três operários alemães. Estão de folga. Bebem cerveja quente e dão vazão a uma alegria rude. Um deles, visivelmente embriagado, tenta, sem sucesso, cantar uma jovem atenta à leitura de um livro. Os operários, um tanto desengonçados, descem em Nuremberg.

Duas camponesas de meia idade ocupam os lugares deixados por eles. Também elas bebem cerveja e mastigam fatias do velho e bom bauerbrot (pão camponês). Uma delas faz gesto de oferecer-me um copo, mas a outra a dissuade dizendo que sou estrangeiro. O calor aumenta. A temperatura se torna insuportável. As mulheres me agradecem por ter a idéia de transformar um exemplar da revista Der Spiegel em sucedâneo de leque para arejar um pouco o ambiente. De repente, deixo de ser estranho. Elas falam, falam, fazem perguntas, querem saber coisas da vida cotidiana na França e no Brasil. Uma delas comenta: “o mundo é grande e cheio de diferenças”.

Na chegada a Bamberg, um desencontro à descida do trem não impede o reencontro com os Schäder em seu apartamento da pequena praça Schranne no centro histórico da cidade, quase à sombra das torres da catedral. O casal, Rita e Franz, como sempre muito amistoso. Os dois planejaram encontros com conhecidos: os Wohlleber, Josef Eckert, os Hoffmann, os Keiser, os Neubauer...

Nas conversas, vêm à tona lembranças da primeira estada na cidade, no verão de 1961, com colegas do Pio Brasileiro em Roma, tendo por guia o padre jesuíta Marcelo Azevedo. As famílias, que então nos acolheram, tudo fizeram para facilitar uma primeira iniciação à cultura e à língua do país. Ao me preparar, em Roma, para a viagem, mal cobri as dez primeiras lições do método Assimil da língua alemã. Era quase nada.

Ocorreu que três dias depois de chegar em Bamberg, – à noite, de volta para casa com Otto Wohlleber – presenciamos um acidente: o choque de um ciclista com um pedestre. A polícia apareceu a tempo de dar encaminhamento ao fato. Em casa, tive grande dificuldade em descrever o ocorrido. Rita mal pode acreditar no que ouviu de mim. Na manhã seguinte, procurou Frau Wohlleber para ter a versão de seu filho. Por sorte, a versão dele coincidiu com a minha. Rita ainda hoje se pergunta como me foi possível narrar o fato com tamanha precisão. Eu também me pergunto.

Outro fato lembrado foi a ida dos brasileiros a Berlim, onde passamos alguns dias. Lá pudemos sentir de perto o clima de “guerra fria”. Tivemos uma reunião cuidadosamente planejada com estudantes numa paróquia no lado oriental da cidade. Saímos da reunião convencidos de que era iminente o fechamento da fronteira entre os dois lados de Berlim. Voltamos a Bamberg no dia 12 de agosto. No dia seguinte, 13 de agosto de 1961, o mundo era informado da decisão de construir o muro.  Este viria a ter 66,5 km de gradeamento metálico, 302 torres de observação, 120 redes metálicas eletrificadas com alarme e 225 pistas de corrida para ferozes cães de guarda. Durante 28 anos, até 13 de outubro de 1989, essa parafernália passaria a constituir, na consciência coletiva de boa parte do mundo, uma das imagens eloqüentes da “cortina de ferro”.

Voltemos a Bamberg e ao mês de junho de 1965. Os três dias passados ali foram preenchidos de muitos encontros e muitas evocações. Não pude deixar de reservar um momento para ir sozinho, pisando as pedras toscas de uma rua íngreme, até à catedral rever suas estátuas: Isabel “a mais bonita resposta de pedra à procura bíblica de uma mulher forte” e o cavaleiro ou “o gesto do cavaleiro em porte de viajar”. No jardim das rosas, logo ao lado, sentei-me à sombra de uma árvore apinhada de pássaros e vivi momento de incomensurável harmonia comigo mesmo, com os seres, com o mundo. Creio que ali me veio a inspiração de escrever modesto poema que divulgo agora pela primeira vez à guisa de conclusão desta nota:

Bamberg

O amigo mandou o quadro 
pintado em cores discretas
como a Bamberg convém
as quatro torres da catedral
que o povo ternamente diz der Dom
os sinos de São Miguel
o gesto da mulher oferecendo a casa
para eu passar a chuva
e a presença ubíqua
do rei Henrique santo
e da rainha Cunegunde também santa.

O rio, a velha prefeitura, os montes,
a noite quase fria no caminho do parque
onde os cisnes eram símbolos de outros cisnes
a pracinha com no centro o Gabelmann
e meu desejo maluco
de entender o dialeto das crianças.
A face de Isabel na catedral 
a mais bonita resposta de pedra
à procura bíblica de uma mulher forte.
Eu sei que os lampiões na parte antiga
eram propositadamente poucos
para que sua luz mal filtrasse a presença
 do anjo protetor da cidade
na noite dos homens esquecidos.

Mas quem poderá escrever o indizível
sugerido no segredo de Bamberg?
Que artista montou no cavalo
o gesto do cavaleiro
em porte de viajar?

Eu sei que viajamos todos nós
 e que é vã a procura dos sinais
de passos no caminho envelhecido.
Mas é que o amigo deixou branco
um detalhe no quadro remetido
e sinto não ser bom que fique assim.

Por isso é com ternura que me ponho
a desenhar com tintas de saudade
estes sinais de interrogação:
um dia se eu voltar
recolherei os passos que perdi 
no silêncio de tuas ruas medievas?

Fonte da Imagem: Site Wikipedia