O VELHO E A VIDA

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data segunda-feira, 25 de julho de 2011 0 comentários

Sol escaldante, carrasco agressivo. Árvores ressequidas, sem serventia de sombra. Viajo com Edgar Linhares – então membro do Conselho de Educação, hoje seu presidente – neste ano de  1992. Ou 1993?  Visitamos   escolas em alguns municípios da zona  noroeste do estado. É um período de seca, e, para ser sincero, não pretendemos apenas levantar  dados numéricos de nossa educação. Buscamos também perscrutar as condições concretas de sobrevivência de famílias que mandam, ou não, seus filhos à escola.

Numa dobra da estrada carroçável, damos com a casa de tijolo, entregue ao fardo dos anos e exposta ao rigor de meses inteiriços sem chuva. Ao redor da casa, nada. Nada de vida vegetal ou animal: um cachorro, uma galinha, um porco sequer. Nem um mamoeiro, um pé de limão, um cróton que seja. O mormaço do sol e o silêncio da vida envolvem a paisagem. Esta é a casa, imaginei. E Edgar deve ter proposto: vamos parar. Batemos palma, e vem à porta o homem idoso. É uma pessoa pacata que sinaliza um gesto acolhedor.

O homem não está só. Do interior da casa, aparecem a esposa, duas filhas e um neto. As filhas moram com seus companheiros no povoado, distante meia légua. Os maridos estão desempregados. Melhor dizendo, um deles ficou sem trabalho há dois meses, quando findou a recuperação da estrada estadual. O outro, de 22 anos, não tem trabalho fixo, nem a família pode acreditar quando alega que ganha alguns trocados  no jogo, em dias de feira. O velho se pergunta como pode viver do jogo alguém que não tem como bancar uma perda. E como pode ganhar, se não tem o que apostar? As mulheres vieram passar o dia com os pais. Os rapazes ficaram no povoado. A mulher mais jovem, de 17 anos, está grávida.

Na sala da casa, um pote caquético, a propaganda eleitoral de um candidato, dois tamboretes, duas latas grandes, uma caixa de papelão contendo alguma roupa, lençol, rede. Na cozinha, um fogão meio morto, uns raros utensílios. Um pouco de arroz num alguidar, um pedaço de toucinho pendente de um caibro. O cheiro de antiga fartura tornada fome. O vazio da casa ecoa a pergunta tantas vezes repetida ao longo dessa viagem no coração da seca cearense. Como sobreviver e dar continuidade à espécie em circunstância de tamanha aridez?

Como suportar, dia após dia,  o peso de imaginar, a cada manhã, a comida do almoço, e no almoço, a comida do jantar? Como situar, no tempo urgente do indispensável, o espaço necessário ao sonho, ao lazer, ao afeto? Com que amplidão de abraço acolher a vida quando nascer a criança esperada pela filha mais nova? Como celebrar devidamente a morte, quando morrer o homem idoso ou a sua esposa? É um caminho duvidoso esse caminho da seca no sertão do Ceará.

A pergunta é dirigida sem maior cerimônia aos familiares. E estes respondem a tudo com honrosa espontaneidade. O pai é aposentado do funrural. Um dos filhos se foi para Brasília, e outro vive em Fortaleza. Os dois têm suas famílias, mesmo assim enviam aos pais esporadicamente algum dinheiro, uma roupa, um remédio. Mas, diz o homem, o funrural é o alicerce, o mais seguro, embora ameaçado mensalmente pela inflação. É pena, comenta, que a patroa não tenha ainda conseguido o seu “aposento”.

O isolamento não alienou o homem idoso. É relativamente informado do que ocorre no município, no estado, no país. Diz com palavras simples aquilo que os economistas explanam com o aparato útil da estatística. Que em três anos de seca a terra do Ceará se desnuda a olhos vistos. Que a erosão e o assoreamento reduzem o tempo de vida das águas. Que a safra de alimentos nestes dias é, cada ano, menor.

É um cidadão que consegue, a seu jeito,  administrar a solidariedade no quadro de acertos e desacertos dos familiares. Como pequeno produtor rural, encarna as privações de outras famílias.  Sente a falta de uma organização que lhes permita resolver a complexa equação da vida coletiva. Acompanha a seu modo as reivindicações dos trabalhadores rurais e as promessas dos homens lá de cima. Mas os homens, de Fortaleza e Brasília, é tudo distante, pensa ele. Não sabem   desencadear uma ação de envergadura, consistente e continuada.

O velho tem uma fórmula matreira de caracterizar a administração pública municipal: “ O novo prefeito mal chegou e já quer desmanchar o que o outro não fez”. Ri da própria tirada. Um riso cético de quem não espera, mas tampouco desespera. Um riso pacato de quem observa o dia reproduzir o dia na ordem abstrata das coisas impostas. Enquanto observa, a força da vida age em suas entranhas. Ele dirige o olhar  para o oeste, onde se divisa o contorno entristecido dos contrafortes da Serra Grande.

É de lá, arremata ele, que vem a chuva. Quando vem.

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