À SOMBRA DA CATEDRAL

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data sexta-feira, 8 de abril de 2011 0 comentários
Catedral Imperial de Bamberg-Alemanha



25.06.1965. Início de verão muito calorento na Europa Central. Hoje peguei o trem em Estrasburgo, França, com destino a Bamberg na Baviera, Alemanha. Jean Rieux, colega canadense, ofereceu-se para me conduzir à estação. Roberto, amigo carioca, nos acompanhou. Conversamos no restaurante até a chegada do trem.             

Viagem terrível. Calor infernal. Lembrei-me de outra viagem em um trem da Rede Viação Cearense, entre Fortaleza e Recife. Também no Ceará fazia um calor intenso. Em Stuttgart, sobem três operários alemães. Estão de folga. Bebem cerveja quente e dão vazão a uma alegria rude. Um deles, visivelmente embriagado, tenta, sem sucesso, cantar uma jovem atenta à leitura de um livro. Os operários, um tanto desengonçados, descem em Nuremberg.

Duas camponesas de meia idade ocupam os lugares deixados por eles. Também elas bebem cerveja e mastigam fatias do velho e bom bauerbrot (pão camponês). Uma delas faz gesto de oferecer-me um copo, mas a outra a dissuade dizendo que sou estrangeiro. O calor aumenta. A temperatura se torna insuportável. As mulheres me agradecem por ter a idéia de transformar um exemplar da revista Der Spiegel em sucedâneo de leque para arejar um pouco o ambiente. De repente, deixo de ser estranho. Elas falam, falam, fazem perguntas, querem saber coisas da vida cotidiana na França e no Brasil. Uma delas comenta: “o mundo é grande e cheio de diferenças”.

Na chegada a Bamberg, um desencontro à descida do trem não impede o reencontro com os Schäder em seu apartamento da pequena praça Schranne no centro histórico da cidade, quase à sombra das torres da catedral. O casal, Rita e Franz, como sempre muito amistoso. Os dois planejaram encontros com conhecidos: os Wohlleber, Josef Eckert, os Hoffmann, os Keiser, os Neubauer...

Nas conversas, vêm à tona lembranças da primeira estada na cidade, no verão de 1961, com colegas do Pio Brasileiro em Roma, tendo por guia o padre jesuíta Marcelo Azevedo. As famílias, que então nos acolheram, tudo fizeram para facilitar uma primeira iniciação à cultura e à língua do país. Ao me preparar, em Roma, para a viagem, mal cobri as dez primeiras lições do método Assimil da língua alemã. Era quase nada.

Ocorreu que três dias depois de chegar em Bamberg, – à noite, de volta para casa com Otto Wohlleber – presenciamos um acidente: o choque de um ciclista com um pedestre. A polícia apareceu a tempo de dar encaminhamento ao fato. Em casa, tive grande dificuldade em descrever o ocorrido. Rita mal pode acreditar no que ouviu de mim. Na manhã seguinte, procurou Frau Wohlleber para ter a versão de seu filho. Por sorte, a versão dele coincidiu com a minha. Rita ainda hoje se pergunta como me foi possível narrar o fato com tamanha precisão. Eu também me pergunto.

Outro fato lembrado foi a ida dos brasileiros a Berlim, onde passamos alguns dias. Lá pudemos sentir de perto o clima de “guerra fria”. Tivemos uma reunião cuidadosamente planejada com estudantes numa paróquia no lado oriental da cidade. Saímos da reunião convencidos de que era iminente o fechamento da fronteira entre os dois lados de Berlim. Voltamos a Bamberg no dia 12 de agosto. No dia seguinte, 13 de agosto de 1961, o mundo era informado da decisão de construir o muro.  Este viria a ter 66,5 km de gradeamento metálico, 302 torres de observação, 120 redes metálicas eletrificadas com alarme e 225 pistas de corrida para ferozes cães de guarda. Durante 28 anos, até 13 de outubro de 1989, essa parafernália passaria a constituir, na consciência coletiva de boa parte do mundo, uma das imagens eloqüentes da “cortina de ferro”.

Voltemos a Bamberg e ao mês de junho de 1965. Os três dias passados ali foram preenchidos de muitos encontros e muitas evocações. Não pude deixar de reservar um momento para ir sozinho, pisando as pedras toscas de uma rua íngreme, até à catedral rever suas estátuas: Isabel “a mais bonita resposta de pedra à procura bíblica de uma mulher forte” e o cavaleiro ou “o gesto do cavaleiro em porte de viajar”. No jardim das rosas, logo ao lado, sentei-me à sombra de uma árvore apinhada de pássaros e vivi momento de incomensurável harmonia comigo mesmo, com os seres, com o mundo. Creio que ali me veio a inspiração de escrever modesto poema que divulgo agora pela primeira vez à guisa de conclusão desta nota:

Bamberg

O amigo mandou o quadro 
pintado em cores discretas
como a Bamberg convém
as quatro torres da catedral
que o povo ternamente diz der Dom
os sinos de São Miguel
o gesto da mulher oferecendo a casa
para eu passar a chuva
e a presença ubíqua
do rei Henrique santo
e da rainha Cunegunde também santa.

O rio, a velha prefeitura, os montes,
a noite quase fria no caminho do parque
onde os cisnes eram símbolos de outros cisnes
a pracinha com no centro o Gabelmann
e meu desejo maluco
de entender o dialeto das crianças.
A face de Isabel na catedral 
a mais bonita resposta de pedra
à procura bíblica de uma mulher forte.
Eu sei que os lampiões na parte antiga
eram propositadamente poucos
para que sua luz mal filtrasse a presença
 do anjo protetor da cidade
na noite dos homens esquecidos.

Mas quem poderá escrever o indizível
sugerido no segredo de Bamberg?
Que artista montou no cavalo
o gesto do cavaleiro
em porte de viajar?

Eu sei que viajamos todos nós
 e que é vã a procura dos sinais
de passos no caminho envelhecido.
Mas é que o amigo deixou branco
um detalhe no quadro remetido
e sinto não ser bom que fique assim.

Por isso é com ternura que me ponho
a desenhar com tintas de saudade
estes sinais de interrogação:
um dia se eu voltar
recolherei os passos que perdi 
no silêncio de tuas ruas medievas?

Fonte da Imagem: Site Wikipedia

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