JOÃO - PE. JOÃO

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data sexta-feira, 8 de abril de 2011 0 comentários

 Fim de tarde em Sobral, à margem esquerda do rio Acaraú. O encontro acontece em um restaurante a céu aberto, junto à plácida igrejinha de Nossa Senhora das Dores. Dali é possível divisar a massa líquida do rio deslizando mansamente em direção à noite que se aproxima. Preside a mesa o padre João Batista Frota. Clientes vêm até ele e lhe estendem a mão.  Ninguém fica indiferente à sua presença, à sua pessoa.

Chovera forte na região, dias antes. As águas deixaram marca de sua passagem nas duas margens do rio. À esquerda, houve algum desconforto, mas não danos irreparáveis às obras que embelezam o lado nobre da cidade. Os estragos mais graves ocorreram à margem direita, lá onde vive boa parte da população pobre; lá onde, durante as chuvas, se fez presente o padre João com uma palavra de alento, sua mão de apoio e a bênção solidária.

Agora, aqui está ele. Sua figura aparentemente frágil desperta a atenção pelo modo como escuta os outros, pelo cuidado com que pastora os comensais: “água? Um pouco de vinho? Sirva-se mais, você está comendo pouco”. De sua atitude, algo desborda e atrai que não é fácil descrever. Quem é o padre João? Um contemplativo que olha atento o que está perto, na busca de perscrutar o que se encontra além? Um solitário que jamais se esquiva ao encontro de quem quer que avoque a sua presença? Alguém que enxerga o bem, sem enceguecer perante o mal? Um político suave e firme a quem repugna a fria hipocrisia das habituais práticas eleitoreiras? Um ser humano que persegue metas elevadas movido pela luz de uma fé tranqüila, pela força humilde da esperança, pelo sentido da urgência em construir, passo a passo, o bem comum?

Mas quem é o padre João? Será que ele mesmo sabe? Será que não assume essa atitude de suave e paciente escuta na tentativa de apreender, nas perguntas que lhe são dirigidas, os componentes íntimos reveladores de sua personalidade? Jesus de Nazaré, a quem João se sente particularmente ligado, deu exemplo de procedimento algo similar. Pois não seria outro, à primeira vista pelo menos, o sentido de uma conversa de Jesus com seus discípulos, registrada no evangelho de São Mateus e repetida de forma abreviada nos textos de Marcos e Lucas. Retomemos, então, o capítulo 16 de Mateus, lá onde se descreve a confissão de Pedro, texto aqui reproduzido em versão bastante livre.

Ao chegar numa das aldeias de Cesaréia de Felipe, Jesus perguntou aos que o acompanhavam: “e aí, amigos, o que é que o pessoal anda falando sobre o Filho do homem? Quem acham que ele é?” E os discípulos responderam: “Bom, uns dizem que é João Batista, outros falam de Elias; alguém lembrou Jeremias, e outros citaram outros profetas”. E Jesus: “e vocês, o que é que vocês pensam”? Enquanto alguns se perguntavam o que responder, Pedro, sempre impulsivo, partiu ao ataque: “ora, não tem outra não, você é o Filho de Deus vivo”. O diálogo de Jesus com seus discípulos expressa um método de abordagem familiar a Sócrates. Jesus sabe quem é. Mas, àquela altura de sua missão, quer que os discípulos assimilem o mistério com que haverão de lidar vida afora: Jesus, Filho do Homem, Jesus Filho de Deus.

E o padre João? A impressão que deixa é a de alguém que espera ouvir, das pessoas com que convive, palavras que o ajudem a consolidar o ideal a que se encontra preso desde que se doou ao amigo Jesus de Nazaré. Voltando, pois, às perguntas feitas há pouco, este escriba confessa singelamente não dispor de resposta pronta. E, por essa razão, decidiu sair por aí a perguntar a uns e a outras o que têm a dizer sobre o padre João e o que tem significado para cada um o contato com ele. As pessoas aceitam falar com facilidade. E como falam.
A título de intróito, ouçamos Glória Giovana Sabóia Mont’Alverne Girão, nome à altura da função que exerce em Sobral: a de diretora do Museu Dom José Tupinambá da Frota. Giovana traça o esboço de um retrato do padre João. Diz que ele não nasceu para si, mas para o serviço dos outros. Simples e humilde, é, ao mesmo tempo, dotado de extraordinária força interior, usada em favor dos desventurados, da conversão dos jovens, da propagação do evangelho. Sábio e humano, teve oportunidade de conviver com muitas culturas e assimilar, em experiências e trajetórias pelo mundo afora, sínteses de diferenças e semelhanças susceptíveis de aplicação crítica à realidade nordestina. Nele, a cidadania não é atitude passiva, mas ação permanente em favor de alguém ou de alguma causa de alcance coletivo. Sabe assumir com o povo a execução de tarefas, demonstrando poder de decisão sempre que necessário. Por onde tem passado, sua palavra é ouvida e respeitada, sua liderança jamais contestada.

Outra sobralense de nome comprido, Ada Pimentel Gomes Fernandes Vieira, mãe de família dedicada às lides educacionais no Ceará, seja como professora seja como gestora, lembra que conheceu o padre por intermédio de sua irmã Lísia. Ao encontrá-lo, teve um choque de empatia. Acha que, por ser uma pessoa alvoroçada, sentiu-se vencida pela serenidade do padre. Percebeu que se tratava de alguém simples, não simplório. Ada, apesar de católica, não seguia o padrão habitual da confissão. Mas, em decorrência desse encontro, na primeira oportunidade, mandou-se de Sobral para confessar-se com ele em Massapé, de onde padre João era pároco.

A partir de então passou a refletir sobre seus pecados sociais. Ela não é dessas pessoas que se chegam aos pobres porque é Natal. Embora nunca tenha deixado de ajudá-los, sempre resistiu à idéia de fazer ostentação de suas ajudas. Ocorre que as palavras do padre João avivaram nela a consciência de que fazia pelos pobres menos do que podia, embora não soubesse como fazer mais. Voltou de Massapé com a certeza de que o padre seria para ela não uma estrela, mas um referencial ético: suave, manso, grande, diferente de alguns membros do clero que lhe pareciam distantes, fosforescentes, sem calor humano e espiritual. Padre João, segundo Ada, não é uma pessoa encolhida. Freqüenta tranqüilamente qualquer meio social. Atua nos bastidores, sem alarido. Com a firmeza da rocha e a fluidez da água, tem o dom do mediador e do conciliador. Mediação e conciliação fortes, acreditadas.

Nereu Feix, cidadão gaucho, contemporâneo de João no Colégio Pio Brasileiro de Roma, vive hoje do ofício de tradutor oficial em Düdweiller/Saarbrücken-Alemanha. Numa das vindas ao Brasil, chegou até Sobral e teve a oportunidade de sair com o padre João a visitar bairros que muitos “fingem não ver”, sobretudo depois da inundação do Acaraú. Nereu impressiona-se com as casinhas de barro e o número de pobres subnutridos. Lembra que quanto mais se aproximava das pessoas, mais doíam em sua consciência europeizada os gritos “desesperados e esperançosos” de “padre João, padre João, padre João”. Percorreu Sobral no fusca do padre (placa HVX 6423, ano 1965) que de Wolkswagen, fica valendo simbolicamente apenas a tradução do alemão: carro do povo. Isso porque todos tratam o fusquinha como se fosse o carro de todos.

Nereu dá um salto no tempo. Para trás. Revive o Domingo de Ramos, imagina que o fusca poderia bem ser a jumenta e o jumentinho da entrada de Jesus em Jerusalém, evoca os vendilhões do templo, rememora a metáfora da figueira amaldiçoada e a parábola dos dois filhos e a parábola da festa das bodas e ainda outras parábolas e volta ao tempo dos estudos em Roma e ao pensamento de que aquele seu contemporâneo, vivendo no celeiro de bispos e cardeais brasileiros, nunca foi amigo de pompas, de honras, de manifestações ruidosas, mundanas. Que, ao deixar Roma e se embrenhar na Palestina, João selara em sua convicção mais profunda a nítida opção pelos pobres e pelas causas que ajudam os pobres a participarem da luta pela superação da pobreza.

Escrevendo um dia sobre o padre João, de quem foi colega de estudos em Fortaleza e Roma, Lauro Motta, professor da UFC e do ITEP, afirmou que saíra do clero para casar-se, mas não saíra da Igreja, da qual só se afastaria quando tivesse de viajar para a casa do Pai. Lauro viajou antes de conceder a entrevista que dele se esperava para enriquecer os depoimentos destas páginas. Mas ele deixou pegadas muito nítidas ao longo de sua caminhada ao lado de um colega, de quem soube falar com a sensibilidade de um poeta afeito ao ensino da filosofia e à reflexão teológica.

Na percepção de Lauro, João se destaca por duas características de difícil coabitação numa mesma pessoa: a firmeza das convicções e a suavidade nas atitudes. João lhe ensinou a amar a Igreja, respeitar as consciências, sentir com o povo. “Ele nunca se encastelou no elevado saber da Gregoriana”. Ao se aventurar pelas terras longínquas da Palestina, não perdeu o jeito cearense de ser. “Parecia que tinha ido só ali, à esquina”...

Lauro viu em João o homem da práxis que traduz em ação a carga pesada da teoria; que doma a imaginação sedenta de irrealismo; que torna viável a utopia evangélica. Lauro também leu o livro de João intitulado “Construindo o amanhã” e nele constatou que em sua incursão no Oriente, João intenta não apenas conhecer aquele que inspirou seus pais a lhe darem o nome de João Batista, mas a concretizar o sonho de um possível “retorno de João Batista” para anunciar nos desertos do Nordeste um Novo Advento, para dizer aos que têm 10, 20, 50 camisas que há muitos quase despidos; para lembrar aos que estão se banqueteando que há migalhas caindo das mesas, e que há milhares a procurá-las nos restos depositados em lugares lúgubres pelos caminhões do lixo.

Lauro não aceitou o fato de o padre João não ter sido bispo, em virtude, em última análise, dos usos eclesiásticos que não levam em conta, na escolha dos candidatos, a participação dos padres e leigos da igreja local. A decisão fica engessada numa instância longínqua, não raro desconhecedora das reais necessidades regionais. Sem entrar em conflito com a hierarquia, ele dizia que assim como o papa tem os seus cardeais in pectore, também ele tinha in pectore os seus bispos. Entre estes, estava incluído o padre João Batista Frota então pároco do Patrocínio em Sobral.

Seja como for, bispo ou não, nada afetou o “jeito cearense de ser” do padre João, que Lauro encontrou em Sobral e assim descreveu: “Na paróquia, na universidade, na coordenação pastoral, nos trabalhos diocesanos, lá está aquele homem manso no falar e decidido no agir, poeta, filósofo, teólogo, sobretudo pastor e profeta, precursor autêntico de Deus, tanto na aridez de nossos desertos interiores, como na problemática complexa de nossas cidades”.

A opção de João pelos humildes impressiona pelo fato de não implicar no desprezo das pessoas de pertença social elevada, mesmo aquelas que estão longe de compartilhar os seus valores. O espanhol Dom Xavier, bispo de Tianguá, vai longe na percepção dessa atitude. A consistência da opção do padre João estaria enraizada em sua formação humanística, visto que só uma cultura filosófica sólida pode conferir fundamentação teológica consistente a uma pastoral sem preconceito.

O curso de filosofia é um curso de humanização, e, por isso, a Igreja não abre mão da formação filosófica de seus sacerdotes. Dom Xavier ressalta que algumas espiritualidades exaltadas minimizam a importância dos estudos humanísticos como se estes ameaçassem a identidade cristã. É um engano e uma pena porque “humanidade é humanidade”, que Deus não rejeita. Ao contrario, Deus a distinguiu quando o seu Filho assumiu a condição humana.

Esses testemunhos iniciais constituem uma indicação do quanto o padre João é percebido pelo olhar de seus contemporâneos como alguém que tem procurado assumir a condição humana (e desumana) de seus irmãos em Cristo. Por isso mesmo, é sempre indispensável ir além no acompanhamento de seus passos.
(07/04/2011)

Fonte da Imagem: Blog do Edílson

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