ONDE ESTÁ O JALECO?

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data domingo, 27 de março de 2011 0 comentários

Altas horas da noite em Fortaleza. Dois educadores sociais percorrem a orla marítima da Praia de Iracema à Praia do Futuro, atentos à presença de crianças e adolescentes em situação de risco ou em “ação pedinte”.
Por situação de risco, entenda-se: exposição ao tráfico ou consumo de drogas, ao furto ou roubo, à exploração sexual. Entenda-se por “ação pedinte”: pedir esmola, comida ou remédio, com a justificativa toda pronta de um pai doente, uma mãe também doente, “levar comida pra casa”, pagar o ônibus.
Isso ao embalo do sonho e  ao delírio das promessas da vida na rua, ao torpor do sono na areia, à frieza das restrições da lei, à dura indiferença do mundo adulto.
A dupla de educadores faz parte de uma equipe mais numerosa, que atua, em diferentes turnos e em diferentes pontos da cidade, integrada ao programa Criança fora da Rua, dentro da Escola.
O percurso diurnal  dos  educadores  nem sempre segue o mesmo  itinerário. Os que vieram ter comigo na Secretaria de Ação Social, que coordena o programa, trouxeram breves anotações sobre fatos ocorridos recentemente. Eu mesmo tive oportunidade de acompanhá-los alguma vez para sentir de perto  a reação das crianças abordadas.
Nas últimas noites percorreram-se, além da Beira Mar, as avenidas Virgílio Távora, Santos Dumont, Santana Júnior, Antonio Tomás, Heráclito Graça, 13 de Maio e Luciano Carneiro até o aeroporto. Na Beira Mar, em frente à Peixada do Meio, havia duas crianças dormindo debaixo de uma jangada. A mãe, Dona Lúcia, estava logo ali, vendendo bebidas alcoólicas numa barraca. Constatou-se que as crianças eram beneficiárias do programa. Dona Lúcia resistiu a se identificar, com receio de perder o ganho da bolsa.
De madrugada, no aeroporto, duas mães dizem que ali estão para apanhar os filhos. Não é verdade. Dois motoristas de taxi e um policial militar testemunham que as conhecem e que recebem das crianças o dinheiro por elas recolhido. São alertadas sobre a situação de flagrante exploração econômica dos filhos. Não é papel dos educadores autuá-las. Mas são  advertidas de que no dia seguinte serão visitadas, em suas casas na Vila União, pela equipe diurna que as orientará sobre como cadastrar as crianças. No retorno à Beira Mar, a equipe deparou os habituais meninos com uniforme dos jornais O Povo, Tribuna, Diário do Nordeste. Os educadores encerram o percurso na Praia do Futuro sem que ali constatem a presença de crianças.
Em 04.02.1997, a equipe reencontra na Praia de Iracema, alguns adolescentes engraxates, já conhecidos do programa. Eles tentam evitar a abordagem. Aproximam-se de um cidadão vestido a rigor, cabelo raspado, fumando charuto. Trata-se de um italiano, também ele conhecido na área, que às vezes chega de carro, às vezes de moto japonesa de 50 cilindradas. Um vendedor ambulante viu várias vezes o homem doar aos meninos provisões alimentícias, transportá-los em um veículo Opala e até recolher valores conseguidos por eles na Praia de Iracema.
Um aspecto crucial do projeto, chamado carinhosamente “Fora e Dentro”, reside justamente no encontro do educador social – o “amarelinho”  por causa do jaleco que endossa - com o menino e a menina no cenário diurno e noturno da rua. Esse encontro é o ponto de partida de todo um processo estruturado para reorientar o destino dessas crianças e de suas famílias, devolvendo-lhes uma perspectiva de reinserção à escola, ao saneamento, aos atos médicos, à moradia, ao trabalho, à vida em sociedade, mediante a aplicação correta de recursos socialmente disponíveis.
O programa foi lançado em 8 de julho de 1976. Coordenado pela Secretaria do Trabalho e Ação Social, a ele dedicaram atenção e esforço  muitos técnicos competentes em sua fase de preparação e no período de sua implementação. Antes de seu lançamento, houve seis meses de  testes de abordagem de meninos em “situação de rua”, assim como de intercâmbio com membros do Judiciário e do Ministério Público, com órgãos policiais, representantes de ONGs, empresários, os meios de comunicação social e, last but not least, com as diversas secretarias setoriais.
Muito há a dizer sobre esse projeto e outros mais voltados para a infância e a adolescência nos anos 80 e 90, particularmente aqueles inseridos no “Proares”. Foram projetos que, com maior ou menor sucesso, centraram-se em quatro dimensões:
  1. garantia de acesso e permanência na escola e em programas sociais para crianças e adolescentes em situação de risco;
  2. concessão de bolsa escola, no valor de 50% a 100% do salário mínimo, em função do número de filhos e da renda familiar per capita;
  3. atenção seletiva às famílias dos meninos, oferecendo-lhes acesso a programas de emprego e renda, de capacitação profissional, instrumental de trabalho, expedição de documentos, recuperação de moradias, concessão de cestas básicas, atendimento médico e psicossocial, entre outros projetos desenvolvidos pela própria secretaria;
  4. envolvimento de outros órgãos governamentais e da  sociedade civil visando a conquista ética de nova postura em relação à problemática do “menino de rua”.
Deve-se a Rosélia Maria Fernandes Monteiro de  Farias o exame acurado da dimensão social do programa no campo específico da proteção à infância e à adolescência: O programa “Criança Fora da Rua, Dentro da Escola” no contexto do enfrentamento à Pobreza, 1998. A autora pontua a situação dos meninos e meninas, assim como a de seus familiares, na trajetória da rua e da sobrevivência. Descreve os seus aspectos organizacionais e operacionais, seu campo de abrangência, a interação com as políticas sociais básicas, os resultados alcançados.
Lembra que em outubro de 1997, quinze  messes depois de seu lançamento, o programa foi selecionado por comitê técnico da FGV como finalista dentre 400 experiências brasileiras de defesa da cidadania infantil e juvenil. E que em novembro do mesmo ano, submetido a uma avaliação in loco foi classificado entre os vinte primeiros finalistas, tendo inclusive recebido um prêmio financeiro.
Rosélia destaca os benefícios diretos e indiretos verificados no cotidiano das famílias: elevação da renda familiar, aplicação criteriosa do recurso da bolsa em necessidades básicas, acesso e permanência dos filhos na escola e em equipamentos comunitários; redução do trabalho infantil, participação em projeto de capacitação, elevação da auto-estima. E conclui que o programa pode ser entendido como “um instrumento social positivo, ainda que de pequeno alcance, em face da ampla parcela da população de baixa renda não contemplada e à limitação dos recursos financeiros que lhe são destinados”.

A memória está sempre a nos pregar das suas. Faz poucos dias, ao passar por um ponto da 13 de Maio, me dei conta da ausência de um amarelinho. Ou de uma amarelinha. Aonde terão ido eles? Será verdade que o programa foi modificado? E o jaleco endossado pelos educadores com sua logomarca: “Criança Fora da Rua, Dentro da Escola”? A Secretaria terá tido o cuidado de conservar uma amostra do jaleco em algum lugar de sua memória? Talvez no Centro de Referência. E por falar no Centro, eu me pergunto e pergunto a Isabel Pontes e a Rosélia de Farias, que nele muito investiram de sua confiança. Rosélia, ou Bel, onde está  e o que faz o  Centro de Referência Maurice Pate (saudoso Diretor Geral do UNICEF)? Aquele centro plantado na Barão de Studart, em frente ao palácio da Abolição, com a finalidade de preservar estudos sobre a infância e a adolescência no Ceará e no Brasil? Ele era ladeado por uma creche modelo destinada aos filhos dos funcionários da Secretaria. E a creche, "quede" a creche?

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