UM PROCESSO EM MARCHA

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data quarta-feira, 23 de março de 2011 0 comentários

O Fórum Social, em sua 11ª etapa de peregrinação mundial, acaba de montar a sua tenda na cidade de Dacar, capital do Senegal. Representantes de 123 países, num total de 50 mil pessoas, debatem o tema geral “As crises do Sistema e das Civilizações”. Os organizadores pretendem dar um tratamento didático ao assunto, distribuindo-o em alguns sub-temas: “A dimensão mundial da crise”; “A situação dos movimentos sociais e dos cidadãos” e “Os processos dos fóruns sociais mundiais”.

Parece, porém, que a realidade do mundo e dos povos caminha mais depressa do que as idéias dos formuladores políticos e sociais. As situações temáticas anunciadas correm o risco saudável de serem embaralhadas, seja pela enorme afluência de participantes com aspirações não necessariamente convergentes, seja pelas explosões recentes ocorridas nos países árabes, que podem forçar uma queda de ponta-cabeça nas linhas de reflexão.

Não se pretende com isso diminuir o papel importante do evento em seu anseio de difundir a idéia de que é possível implantar mundo afora uma nova ordem social diferente daquela que aí está.

É bom que o fórum esteja a acontecer, mais uma vez, na África.  A África não é um lugar qualquer. É um continente marcado pela herança de um processo histórico incompleto, abortado pela dimensão trágica da colonização. Rica em potencialidades é uma terra extorquida de seus filhos (seres humanos) e de sua fauna, sugada de suas matérias primas, ferida em sua identidade cultural.
Impossível imaginar o que se passa em Dacar sem considerar que o evento é fruto de um “processo em marcha” alimentado pelo engajamento político de muitos, assim como pela reflexão silenciosa de outros.

A conjunção do Fórum como mobilização social e da África como cenário a clamar por alternância (ou, como dizem, por um altermundialismo) me estimula a extrair do baú da memória as figuras de dois cidadãos, que, cada um a seu modo, têm muito a ver com o que ocorre em Dacar. Um é brasileiro, Francisco Whitaker, o Chico, o outro é o  benim Basile Kossou  (de Benim, antigo Dahomey – África).

Chico, pensador atuante, é mais que um artesão a entrelaçar os fios de muitos panos. É também um alfaiate. Ao lidar com o tecido social, engendra diálogo e interlocução. Foi assim em seu tempo de Paris, em São Paulo como vereador, em Brasília como consultor da CNBB. E lá está ele em Dacar, estrategista e pedagogo, a descrever melhor do que outros aquilo em que consiste o processo do fórum.

Põe em destaque cinco aspectos inovadores do FSM: 1. criação de um espaço internacional aberto a todos que compartilham o objetivo geral do Fórum: 2. espaço propício ao reconhecimento mútuo, à troca de experiências e ao estabelecimento de novas alianças; 3. na luta política,  a  positiva diversidade de ações  e a autonomia dos  diferentes atores; 4. modelo  de nova cultura política , baseada na horizontalidade das relações, na co-responsabilidade e busca de consenso e 5. ainda em gestação: afirmação do altermundialismo como movimento multiforme que amplia a ação política para além dos partidos e do poder político. Com quase 80 anos, Francisco Whitaker exala sua perene juventude ao falar do Fórum como “processo em marcha”.

Basile Kossou. Infelizmente Basile já não pode estar em Dacar, cidade onde viveu em sua juventude como membro da equipe regional do Movimento Internacional dos Estudantes Católicos. Conheci-o quando na França estava concluindo sua tese de filosofia sobre a noção de SÈ, o que, dito em outras palavras significaria: reflexão sobre o sistema sociocultural dos FON, habitantes do sul de Dahomey.

Ele tinha então 25 anos. Era um jovem disponível à escuta. Um espírito dotado de fina maturidade filosófica. Dele recolhi, em 1969, uma entrevista publicada na revista VISPERA de Montevidéu. A análise que fez então da realidade africana aparece hoje de extraordinária atualidade. Faleceu há alguns anos quando animava em seu país um instituto ligado à UNESCO e relacionado à causa do desenvolvimento. Na entrevista, falou de sua Agbome natal, ex-capital de Dahomey, cidade museu cercada de fossas, acessada por meio de pontes levadiças como nos castelos medievais. Ao lembrar esse detalhe, comentou: “Quando existem fossas, é indispensável construir pontes”. 

Conhecendo o seu espírito aberto ao diálogo, encerrei a apresentação da entrevista com estas palavras: “Talvez um dia se possa dizer de Kossou que foi um cidadão da África e que sua missão consistiu em erigir pontes entre o continente e o resto do mundo”. Hoje, se tivesse podido, ele se encontraria à vontade em Dacar para concordar com o Chico. Segundo o Chico, a aposta maior do Fórum Social Mundial é a de “construir um, duzentos, milhões de espaços de encontro. Em todas as suas variantes”.
10/02/2011

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