ROMARIA IBÉRICA

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data quarta-feira, 23 de março de 2011 0 comentários



Hoje, 19 de julho de 1965. Acabo de pisar o solo espanhol em San Sebastian. Somos uma caravana de 20 pessoas: 15 jovens concludentes do curso secundário e o vigário de Saint-Georges-de-Luzençon (França, Região Midi-Pyrinées, Departamento de Aveyron), o motorista, Pierre, Jean e eu. Foi Pierre, meu colega em um curso intensivo de um ano na Universidade de Estrasburgo, que me convidou para ser guia e intérprete numa viagem por Espanha e Portugal.

No programa, previsão de dormir esta noite em um camping em Burgos. Numa parada no monte Iguelda, em frente a um parque de diversões, surgiu o convite: “Vocês querem rir? Então entrem. Entrem, senhores, entrem no Grande Labirinto. Terão as mais alegres diversões: risa, broma, humor, alegria y musica. Dos ricos varões aos de pouca renda (pequeño sueldo), ninguém deixa Igueldo sem ver estas atrações”.

Em Burgos, no pedestal da estátua de Cid, El Campeador: “Levando consigo sempre a vitória, por sua nunca frustrada clarividência, pela prudente firmeza de caráter e por sua heróica bravura, um milagre dos grandes milagres do Criador”.

Ao guia coube explicar não só quem foi o Cid, mas que aos espanhóis agradam declarações grandiloqüentes e avisos como este pregado à porta de uma das igrejas visitadas: “Mulher cristã, por respeito ao templo, evite entrar sem meias, sem que a manga cubra o cotovelo, com decote exagerado, sem que as saias cubram convenientemente os joelhos”.

Em Salamanca, hora da sesta. Muita gente dorme. O sol em fogo ardente. Não importa. A hora é propícia para vagabundear pela cidade. Em cada esquina, um monumento. Na igreja de Vera Cruz, uma religiosa em profunda contemplação ao Santíssimo Sacramento. Em redor do Santíssimo, o mundo “plateresco” do céu barroco espanhol. A forma branca da contemplativa traz a lembrança de Santa Tereza, a que nasceu em Ávila.

Em Tordesilhas, não vimos traço do tratado arbitrado pelo papa Alexandre VI, pelo qual o Brasil, antes de existir oficialmente, foi cedido a Portugal. Encontramos, sim, uma mulher que enchia sua ânfora na fonte, e fez questão de me confundir com um alemão. Não que eu pareça um alemão, mas a mulher precisava dizer a todos que ihr Mann, seu marido, trabalha na Alemanha, como o fazem muitos outros (espanhóis, portugueses e mediterrâneos). Marido na Alemanha dá status.

No percurso até Salamanca, algumas constatações. Rudez: é rude o clima, é tosco o chão, áspera a arte, duro o esporte (as touradas). As mulheres quase sempre de preto. Cegos vendendo bilhetes de loteria. Culto do Santíssimo Cristo: cabelos postiços, lança cravada ao lado direito. À noite, muita vivacidade popular, mas pouca alusão à vida política (como na Itália e França p. ex.)

Deixamos Espanha em Fuentes de Oñoso e entramos em Portugal por Vilar Formoso. Na alfândega, o agente lembra que os brasileiros têm “mais regalia” e me carimba no passaporte seis meses de permanência. Não será preciso tanto. Parada em Guarda para comprar a comida do almoço. O almoço ocorreu em uma sala da igreja da Misericórdia, com autorização do sacristão. Os franceses vibram com a beleza dos móveis e com a acolhida. Mas antes de chegarmos nós à sala da igreja, chegaram ao mercado os músicos com uma gaita de fole, dois tambores e uma marchinha bem ritmada.

As vendedeiras esqueceram as vendas e os clientes. Abraçaram-se umas às outras e, pés descalços, se puseram a dançar. Uma delas era gorda, um tanto idosa, um tanto feia. Mas dançava e ria e, durante três minutos, foi pássaro, abelha, flor, vento, miragem. Voltou à banca a tempo de ouvir meu alerta sobre as abelhas pousadas nos doces que vendia. E ela, eufórica: “oh, meu senhor, os bichinhos de Deus também têm direito de gostar do que é bom”. Oh, como têm.
A poucos quilômetros de Guarda, Belmonte. Aqui nasceu Cabral, aquele que (por descuido?) deu com o costado no Brasil. Em Castelo Branco, somos recebidos nos jardins do Paço e depois vamos ao seminário, onde ocorre interessante debate franco-lusitano. À pergunta de um dos franceses (mais França ou Portugal?) respondo que, posto na balança, meu coração pende para Portugal.

Ao passar por Porto-Alegre, pensei mostrar ao grupo uma fábrica de cortiça em funcionamento e explicar a importância da produção das tampas de garrafa do vinho francês na economia local. Impossível. É sábado. Em Évora, tomou-se a decisão de ir direto para Lisboa sem parar em Setúbal. Ligo para Maria Tereza, e explico a mudança. Maria Tereza, também ela, foi minha colega de estudo em Estrasburgo. Seu pai, um almirante da reserva, e sua irmã Helena foram muito acolhedores. O almirante nos deu lição sobre mares por ele navegados. Explicou a arquitetura de sua casa, inspirada na planta de um navio.

Maria Tereza e a irmã facilitaram as visitas aos pontos turísticos da cidade (monumentos, tourada, fado, banho de mar) e contatos com grupos de orientação católica em oposição ao regime, e com jovens marcados pela participação forçada na guerra colonial. É o caso do noivo de Maria Tereza.

A permanência no camping favoreceu contatos com famílias portuguesas que deram indicações preciosas para o retorno em direção ao norte, até chegar a Santiago de Compostela. Isso facilitou bastante a acolhida em Alcobaça, Batalha, Nazaré, Fátima e Braga. Ajudou também a desfazer em alguns jovens franceses certo tipo de visão estereotipada e de preconceito. Encontro com o engenheiro Calvário e familiares. Ele me levou a conhecer o Arquivo Histórico Ultramarino e fez de tudo para me convencer a pleitear uma bolsa da Fundação Gulbenkian para uma temporada em Lisboa.

Durante a viagem, o grupo pernoitou quase sempre em campings. Vez por outra, foi possível dormir em albergues ou em casas de religiosos. Tinha-se então a oportunidade de um banho em regra e de lavar camisas e peças íntimas. Em Fátima, o pernoite foi excelente. Depois do jantar, visita à capelinha construída no lugar onde se deram as aparições. Um frade capuchinho falou da dimensão espiritual da visita. Fiz a tradução simultânea. Dois jovens levantaram objeções. O frade respondeu com serenidade e respeito. Os jovens não revidaram.

Na manhã seguinte, visita ao santuário, e mais uma avaliação da viagem. Foram citados casos que tocaram fundo os membros do grupo. Superação de idéias preconcebidas sobre os dois países visitados e seus habitantes. Reconsideração dos modelos próprios de compreender, julgar e sentir, a partir dos valores percebidos nas populações locais.

Santiago de Compostela. Cada um subiu ou deixou de subir a escadinha atrás do altar. Cada um beijou ou deixou de beijar o manto do santo à altura do ombro, como têm feito peregrinos desde a Idade Média. Um dos jovens disse, durante a avaliação, que não seria razoável duvidar dos sentimentos das pessoas. Mas não se sentira capaz de fazer o gesto do beijar o santo, por uma questão de autenticidade.

Entre os adultos do grupo, foi Pierre quem mais dialogou com cada um dos jovens. Todos concordaram com ele quando explicou que a viagem estava sendo uma romaria em busca de ampliar a compreensão do mundo e das pessoas. De tornar mais abrangente a própria percepção da realidade: “Só um espírito verdadeiramente universal pode captar a riqueza do particular”.
Retorno a Saint-Georges e ao tempo que virá.

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