PRESENÇA DE DOM HELDER

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data terça-feira, 22 de março de 2011 0 comentários


Se vivo fosse, ele estaria completando 102 anos neste sete de fevereiro. Nascido em Fortaleza em 1909 e falecido em Recife aos 27 de agosto de 1999, Dom Helder Câmara teve uma vida marcada pela fome de libertação e a sede de justiça. Sua verdadeira pátria foi mais extensa do que seu país. Sua dimensão espiritual extrapolou as fronteiras humanas de sua igreja. Sua mensagem não se esgotou na repetição de obviedades. Era adepto da palavra falada. Sua voz pairou sobre o cenário do mundo.

Ele conseguia mover-se incólume no labirinto das contradições a que podem estar sujeitas as ações humanas mais generosas. E mostrar, com dados à mão, até que ponto os poderes são capazes  de oprimir o homem, quando os projetos políticos escapam ao controle do homem e desencadeiam mecanismos destinados a perpetuar seu sacrifício. Ele tinha claro que a opressão não desfaz a consciência da liberdade e da justiça nem aniquila a força daqueles que lutam pela reconquista de ambas.

Líder desenvolto no interior do aparelho eclesiástico, firmou-se como um dos arautos da inovação eclesial. Membro disciplinado de uma religião triunfalista, conseguiu inspirar a muitos o sonho de uma igreja servidora, comunidade de salvação. Com trânsito livre junto às elites e hierarquias, sabia como escavar o chão árido das estruturas dominantes para delas fazer jorrar uma fonte de vida. Nunca perdeu de vista os pobres. Para ele, pobreza não era abstração, mas a realidade concreta de seres em situação palpável de carência de quanto lhes é indispensável à própria sobrevivência.

Tinha consciência de não ser um teólogo, mas sabia como ninguém animar a reflexão teológica. Durante sua vibrante atuação nos corredores e adjacências do Concílio Vaticano II, nunca falou em plenário. Nas palestras, proferidas a convite, sua palavra, falada e escrita, sobretudo quando expressa em francês, era simples, despojada, sempre complementada por seus famosos gestos teatrais. “Eu falava com as mãos”, lembrou ele no livro Les  Conversations d’un Évêque,  elaborado a partir de diálogos com o jornalista francês José de Broucker.

Impossível esquecer duas cenas presenciadas por mim em 1974 a poucos dias uma da outra. A primeira em Friburgo, Suiça, quando lhe foi outorgada, no auditório da Universidade, a homenagem acadêmica de doutor honoris causa. Foi então muito aplaudido pelo grand monde do saber e da reflexão. A segunda em Bruxelas, durante almoço em barulhento restaurante popular. Quando o apresentador do jornal televisivo anunciou sua presença no estúdio para uma entrevista, o grande salão se fez silêncio e foi possível sentir a magia que sua palavra e sua imagem transmitiam a um público heterogêneo formado de comerciários, trabalhadores de pequenas oficinas e empregados de setores de serviços.

De Dom Helder, quê mensagem destacar? Não sei se ele leu, e com que frequência, a obra de Albert Camus, o renomado escritor francês. Chego, porém, a imginá-lo atento em suas meditaçõs a este trecho dos Carnets: “O cristianismo é pessimista em relação ao homem e otimista quanto ao destino humano”. Como Camus, ele parece ter penetrado fundo na apreensão da condição humana. Mas, ao contrário do autor da Peste, que se dizia “pessimista quanto à condição humana e otimista quanto ao homem”, o Dom – como o chamavam os íntimos – era otimista em ambas as circunstâncias. Ele inspirou a ideia de que o homem, chamado a transformar o mundo, devia transformar-se a si mesmo. Era ativo. Propunha a criação de espaços individuais e coletivos nos quais a conquista da liberdade e da justiça se impusesse como tarefa inadiável.

Cumpre lembrar, enfim, que Dom Helder era ecumênico. Ele enxergava longe e via a todos como irmãos. A consciência da fraternidade, fundada na relação a um Pai comum, dispensava-o dos volteios acadêmicos e o levava a transmitir, com palavras simples, o vigor de suas intuições e de sua eloquência. Dom Helder tinha pressa. Pedia que, ao reconhecermos que somos irmãos, puséssemos em prática o exercício da solidariedade. Os meios para tanto não faltariam. E aos que murmuravam que a sua era a voz de quem clamava no deserto, ele respondeu com pequeno livro cheio de vida, publicado em fracês sob o título Le Désert est fertile. O Deserto é fértil.

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