A DERIVA DAS ÁGUAS

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data terça-feira, 22 de março de 2011 0 comentários


Há perguntas lançadas ao leu, não para suscitar esclarecimento, mas com o propósito de confundir. Tendo por pano de fundo a tragédia que se abate sobre o estado do Rio, FJ quer saber qual “o limite entre aproveitar os meios que a natureza põe à nossa disposição e o não abusar dela”. E logo acrescenta: “Como não considerar belas essas imagens da televisão que destacam o sumiço da paisagem, a destruição do ambiente, a erradicação da vida e de seu ordenamento?”

Calma, FJ. Deixe ao interlocutor o tempo de assimilar o sentido de suas perguntas. E por favor tenha piedade, se não houver resposta ou se a resposta não lhe trouxer a satisfação desejada. Seu interlocutor também se interroga.

As imagens da tragédia. Você encara algo que, como dizem os latinos, objacet: está à sua frente. São imagens carregadas de realidade objetiva, como é carregada a nuvem antes de transmudar-se em chuva. É a imagem da casa, antes de a casa ruir. São imagens das casas antes de serem as casas arrastadas  pelas árvores. E são as árvores e as casas antes de sucumbirem árvores e casas ao impulso da água e da terra e ao peso da própria massa. É a imagem refletida da massa pastosa que soterra os homens, as mulheres, as crianças e os bichos, todos feitos iguais na morte da vida, na noite da morte. É o porto inseguro da vida à deriva.

Ou seja, você mal viu a forma das coisas e já sofre o impacto dos destroços em movimento. Percebe que a casa já não é casa, mas algo em desmancho e desfiguração. O rio deixa de ser rio, espraia seu leito no eito das roças, nas ruas de casas. Não pede passagem. Adentra e  invade. Destrói  e  inunda.   As casas se abrem, eviscerando os pertences das famílias e  eventrando as próprias  famílias de suas dores, do seu sofrer. A paisagem também deixa de sê-lo, tornada desfazimento de tudo que –  com a casa, o rio, a roça, a rua e demais coisas da vida – se esvai.

Dentro de você – além do que vê, aquém talvez do que mensura – algo o incomoda, que não é mera imagem. Será medo, compaixão? Ou a impregnação resultante do vínculo que se estabelece entre aquele que vê (sujeito – subjetivo) e aquilo que é visto (objeto – objetivo)? Os filósofos mexem e remexem esses vínculos na tentativa de extraírem valores das entranhas da tragédia.

Valores: aspectos prenhes de sentido, força e fecundidade que vinculam não só os termos do olhar (aquele que vê àquilo que é visto), mas presidem a própria ação criadora dos vínculos. Você deve, pois, ser você, na montagem da relação solidária com os outros e tudo o mais, como a aranha é aranha no emaranhado da teia vinculante.

O homem, ao estabelecer-se como tal, deve escapar ao distanciamento do olhar objetivo e abrir-se ao acolhimento da identidade do outro e da intersubjetividade: influências mútuas, experiências recíprocas. O espanhol repetiu à exaustão: “eu sou eu e minhas circunstâncias”. Nesta sofrida circunstância fluminense tocada pela mão súbita da  natureza sobre o cenário histórico construído lentamente pelas mãos de humanos, somos todos chamados a recompor os vínculos, a repensar  os trajetos, a repaginar o quadro de nosso existir no espaço de uma natureza que precisa com urgência ser mais bem conhecida e respeitada.

As dúvidas de FJ certamente me acompanharão por mais um pouco. Elas afloram a cada cena ou comentário da televisão. Impossível não ficar atento às análises dos peritos em diferentes saberes. Impossível também não sentir um quê de déjà vu nas críticas repisadas quanto ao passado e nas promessas quanto ao futuro. Essa tragédia nos diz que vivemos em um país de extremada pobreza política: a política sendo  indispensável à promoção de razoável equilíbrio da vida em comum.

Conhecemos mal as questões ambientais. Pouco sabemos como articular a integração dos sistemas e das espécies da natureza. Uma nossa cultura antropocêntrica de apropriação predatória dos bens naturais expõe a nossa condição humana a ameaças constantes tanto nas áreas rurais quanto em meio urbano. Sem insistir na crônica anunciada das tragédias sazonais, somos entregues à ditadura constante de uma infraestrutura destroçada e do automóvel, que, com incrível regularidade, desfiguram a paisagem, paralisam a mobilidade, ceifam vidas. Enquanto a vida, com renovada teimosia, insiste em pulsar, tangida a distância pela luz bruxuleante de uma estrela.

0 comentários A DERIVA DAS ÁGUAS

Postar um comentário