MERGULHO NA ESPERANÇA

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data terça-feira, 22 de março de 2011 0 comentários
“Só pode considerar-se viajante de verdade aquele que viaja em busca de si mesmo”. Esta frase de efeito me foi dita por um italiano que acabara de chegar a Roma, de retorno dos Estados Unidos onde não tinha conseguido “fare l`América” (ganhar a vida). A frase me voltou à mente em Bankok durante um passeio de barco a uma área rural, com parada num templo budista. No átrio, um encantador de serpentes adestrava uma naja, a cobra que dilata o pescoço quando enfurecida. À entrada do templo, uma estátua do Buda e, a seu lado, envolto em fumaça de incenso e cigarro, um velho monge. Do Buda de pedra ou do monge de carne esperava resposta a uma interrogação que então me perseguia. O Buda e o bonzo semi-sorriam, semi-dormiam na postura de quem não estava ali para responder a perguntas. O bonzo recebeu, com visível gula, o cigarro (une gauloise) que Claude lhe estendeu. Mas como me explicaria mais tarde Yuengyong, seria preciso ter paciência e tempo para dialogar com o bonzo. Ou com o Buda.

Tempo não havia. Uma ameaça de temporal sugeriu antecipar a volta  ao barco e retomar, rio adentro, o rumo da cidade. Uns meninos, de corpo magro e olhar vivo, nadavam entre as embarcações. Com trêfega insistência, pediam moedas que recebiam com a mão e levavam à boca como ágeis peixes vorazes. “É a vida”, murmurou a professora de distante ascendência portuguesa que nos acompanhava. À noite, no instituto jesuíta onde estávamos hospedados, voltaram-me à memória as cenas do passeio e a imagem de outro monge, também ele budista, procedente do Tibet. Encontrei-o na Alemanha durante um colóquio no recém-criado Instituto Técnico de Bochum. O que deveria ser breve troca de idéias no restaurante dos estudantes transformou-se em uma conversa sobre a pessoa do Buda e o budismo.

O jovem monge explicou  como Siddarta Gautama, o Buda, preocupado com o sofrimento humano, tornou-se um asceta errante, que pretendia promover a realização plena do ser humano e a construção da paz na sociedade. Percorrendo a pé longas distâncias, sob o sol ou sob a chuva, sobre a neve ou sobre pedras, manteve uma atitude de abertura aos grupos sociais, às etnias, às culturas e às  nacionalidades os mais diversos.  Expôs também a doutrina filosófica do budismo fundada nas chamadas três marcas: a impermanência, a insubstancialidade, o nirvana. A impermanência traz consigo a idéia de que nada é perene; que os fenômenos são efêmeros e estão em contínua transformação. A insubstancialidade indica que tudo resulta de mera soma de agregados, não existindo, por exemplo, um núcleo estável que dê sustentação ao conceito de natureza. O desconhecimento das marcas leva o homem a apegar-se a aspectos passageiros da existência; à ilusão de um “eu” permanente transformado em centro de aspirações egoístas, assim como à frustração, à angústia e ao sofrimento. O nirvana seria o estágio de superação das marcas anteriores. Manifesta-se quando o homem compreende a impermanência e a insubstancialidade, libertando-se de suas construções  ilusórias e egoístas e tomando consciência de que sua natureza é idêntica à natureza de todas as coisas.

Não sei. Ao recordar, a anos de distância, o passeio ao templo, a cobra naja, o bonzo, o Buda, os meninos peixes,a conversa com o monge na Alemanha, dou-me conta do quanto é difícil encontrar resposta precisa a dúvida tão vaga. Depois da estada em Bangkok visitei, perto de Djakarta, um misto de jardim botânico e parque paleontológico em plena selva indonésia. Mais do que uma visita, foi uma iniciação cósmica à vida, um mergulho na floresta, um  retorno à origem das coisas: ao fogo, à água, à terra, aos bichos,ao  homem, sem perceber solução de continuidade de um a outro elemento. Quanta origem, quanta luta, quanto saber no rosto múltiplo do homem, em sua plural atividade: caça, pesca, colheita, plantio, canto, dança, teatro de sombra, templos e rituais dos deuses de Deus. O cuidado posto na construção do casarão sombrio, no fabrico e manuseio das armas e das canoas, a intimidade com o cão domesticado. Senti que o tempo não impunha lonjura em relação ao homem   mais remoto da ilha mais  remota, como já não havia distância em relação à mulher do pescador de Sri Lanka no mergulho à origem das coisas e de mim.

Mesmo assim persistia a dúvida. Com a dúvida, crescia a curiosidade de entender melhor a identificação feita pelo Buda entre a natureza de todas as coisas e a natureza do homem. O que me preocupava era saber que, à entrada do templo, o Buda não falou, nem tampouco falou o bonzo a seu lado. Diante de tamanho silêncio na vastidão do mundo percorrido, um tênue fio de esperança me estimulava a não desistir do caminho. A prosseguir a viagem. A ter presente a palavra de um chinês de quem ouvi que “ a estrada mais curta de si para si passa pelo mundo inteiro”.
Dezembro 2010

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