IVAN ILLICH - PROFETA OU SONHADOR?

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data terça-feira, 22 de março de 2011 0 comentários


Deparo, por acaso, com um texto de março de 1974 rascunhado no trem entre Paris e Friburgo na Suíça. É o resumo de um debate organizado pelo Centro Católico de Intelectuais Franceses em torno do pensador e animador cultural Ivan Illich, um dos fundadores do Centro de Informação e Documentação – CIDOC, de Cuernavaca (México).

As iniciativas do CIDOC interagiam com outras tantas, desenvolvidas mais ou menos informalmente, na ambiência conciliar e pós-conciliar e no espírito de maio 68. Assistia-se, então,  a algo como a emergência dos conteúdos de uma universidade aberta ou, como se diria  hoje, dos componentes de uma rede virtual.

Illich, nascido em Viena em 1926, filho de pai jugoslavo e mãe de ascendência judia, faleceu em Bremen (Alemanha), em 2002. Seu nome parece atualmente um tanto esquecido. Mas é possível que a aparência engane. Uma rápida busca na internet possibilita constatar que sua mensagem ainda inspira inúmeros grupos de estudos, seminários, publicações e outras atividades interculturais. Sua reflexão continua bem acolhida junto àqueles que se ocupam de políticas públicas, notadamente das questões educacionais.

Em 1974, embora seu ideário se afinasse bastante com o de outros pensadores (Hans Küng, Gustavo Gutierrez, Helder Câmara, Paulo Freire, Tissa Balassuryia…), foi sobre ele que recaiu a atenção de um jornal francês: “ou se trata de um inofensivo ilusionista a ser esquecido ou de um profeta cujas idéias merecem ser examinadas de perto”. O ambiente europeu de então propendia para a segunda hipótese. A prová-lo, o êxito da venda de seus livros e a afluência de pessoas (mais de 400) presentes ao debate daquela noite em Paris.
Como debatedores, destacavam-se duas figuras conhecidas na cena pública francesa. Por um lado, o jornalista e escritor Jean-Marie Domenach, membro da resistência durante a segunda guerra e até sua morte (1997), redator da revista Esprit, fundada pelo filósofo Emmanuel Mounier. Por outro, o político Jacques Delors, membro do Partido Socialista, ministro da economia, presidente da Comissão Européia durante 10 anos (por indicação de François Mitterrand e Helmuth Kohl), lembrado por ter sido autor e coordenador do relatório para a UNESCO sobre a Educação para o século XXI, intitulado “Educação, um tesouro a descobrir”, que expõe os famosos “Quatro pilares da educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos, aprender a ser”.

Guardo os traços  fisionômicos de Illich: olhar arguto, rosto enxuto, sorriso cáustico, mímica dramática. Sua voz bate sem piedade no modelo socioeconômico dominante nas sociedades desenvolvidas. Modelo que ele considera fadado a não durar no tempo nem a se expandir no espaço. Trata-se, segundo ele, de um modelo doente, afetado não apenas por fatores externos, mas por seu dinamismo interno centrado na busca de progresso e crescimento. Nem é o caso, em sua opinião, de imaginar um novo tipo de expansão, como sugerem alguns espíritos igualmente argutos, para os quais o crescimento constitui um dado irrefragável.

Illich é radical. Não crê que o progresso traga consigo o “melhor”. Afirma, ao contrário, ser ele portador de frustações, desgastes e coações cada dia menos suportáveis. A seu ver, a dinâmica do crescimento seria impulsionada por sofisticados mecanismos que escapam ao controle do homem e até o dominam. O excesso de produção, por exemplo, leva à “contraprodutividade” que acentua o desperdício de bens e, não raro, manifesta até a inutilidade dos conhecimentos acumulados. Diante disso, torna-se de ética urgência reconsiderar as necessidades produzidas artificialmente e identificar uma maneira nova de atender a demandas surgidas no quadro de autêntica dimensão humana.

Sem dúvida, Ivan Illich situa-se na linha dos utópicos. Mas a sua utopia não é normativa. Ele mesmo declara: “eu não proponho uma utopia normativa”. Ele é um profeta, e como tal, não mostra o caminho. Diagnostica rigorosamente o mal, mas não propõe o remédio com a mesma nitidez. Não diz como as coisas devem ser. Limita-se a desvendar a necessidade e a possibilidade de as pessoas e os grupos, no exercício de sua autonomia, reinventarem os meios de enfrentar os problemas que ele descreve. Tangido por essa convicção, passa ao largo dos termos tradicionais  da luta social. Ou da luta de classes.

Como lhe parece  difícil sobreviver numa sociedade marcada por muitas e profundas desigualdades, ele apela para a “convivialidade”, o contrário da produtividade industrial e que não pode existir sem que o homem controle os meios de produção, em vês de ser por eles dominado. Uma sociedade “convivial” é a que oferece condições para a existência da liberdade concretizada mediante a utilização de instrumentos eficazes de ação.

Como explicar a atração exercida por Illich na Europa de então? É bem provável que sua mensagem incidisse  sobre a consciência de uma sociedade opulenta no momento em que começava a sentir na própria carne enferma os limites do crescimento. Era como se houvesse uma conivência entre as suas idéias sobre a sociedade e as inquietações desta última: sentimentos de saturação, perda de sentido, falta de autonomia. Illich tinha o dom de descobrir a enfermidade com uma precisão tal que o enfermo se reconhecia de bom grado em seu diagnóstico.

(Era propósito desta nota comentar o impacto do pensamento de Illich sobre algumas instituições da sociedade, notadamente a educação. Em virtude da limitação de espaço, permita-me o eventual leitor voltar ao assunto oportunamente. JR)

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