PÔR-DO-SOL EM SRI LANKA

Textos da Autoria de José Rosa Abreu Vale Data terça-feira, 22 de março de 2011 0 comentários

A vida flui ao ritmo do tempo, deixando à memória a tarefa de registrar detalhes que, ao refluírem, recompõem traços de situações vivenciadas, Deus sabe onde e quando. Houve um dia, ou melhor dizendo, um cair do dia, sob coqueirais, junto a um mar distante, no mês de agosto de 1974… Vindos de Singapura, Claude e eu fomos recebidos em Colombo, capital de Sri Lanka, por Tissa Balasuriya, sacerdote católico, dirigente do instituto Center for Society and Religion dedicado a questões do desenvolvimento humano. Voltávamos de longa viagem à Ásia que culminara, em Singapura, com um encontro inter-cultural organizado pelo Movimento Internacional de Intelectuais Católicos – seção profissional de Pax Romana – sediado em Fribourg (Suiça), presidido pelo matemático Claude Picard, professor da Universidade de Paris. Eu era então secretário-geral do citado movimento.

Do aeroporto, fomos conduzidos a uma pensão modesta situada em bairro recuado em relação ao mar. O cansaço da viagem não nos permitiu prolongar a noite. Mas a curiosidade não impediu de levantar-me com a aurora e sair pelas ruas do entorno a dar bom-dia à gente humilde que se preparava para iniciar a jornada. Em frente a deteriorada igreja anglicana, a mulher magra e idosa pediu com gestos que a fotografasse. Fotografei também o rapaz que tomava banho à frente de casa. As rodas de lento carro de boi rangiam áspero no leito da rua deserta de automóveis. Uma das fotos mostra, por cima do carro de boi, a revoada de corvos grasnando feio na manhã mormacenta. Depois das fotos, retorno à pensão para frugal café da manhã e ida ao instituto para encontrar, em conversa prolongada, Tissa e vários intelectuais e profissionais de orientação cristã. Muito foi dito então sobre aspectos econômicos, culturais, políticos e religiosos da realidade do país. Deles falarei oportunamente à luz de algumas anotações tomadas.

No meio da tarde, partimos em esquálido carro de aluguel para conhecer uma aldeia de pescadores, a cerca de 30 km de Colombo. Antes de chegar aos pescadores, fomos apresentados, no centro da aldeia, a um grupo de estudantes reunidos no alpendre de um casarão colonial em ruína.

O grupo, formado de jovens de Colombo em ruptura com o estilo de vida burguês de suas famílias, tentava estruturar o roteiro de uma pesquisa-ação sobre as condições de vida e trabalho dos pescadores e suas famílias. Depois de nos servirem, em quengas de coco, um chá muito forte, os estudantes, marcados pela forte influência de Balasuriya, detiveram-se na descrição das condições sociais de Sri Lanka, dando ênfase a seu produto mais importante de sua economia: o chá. “Do chá, disse um dos jovens, vive e morre Sri Lanka. Quarenta anos atrás, o país detinha uma das mais altas rendas do chamado terceiro mundo. Hoje se encontra entre as nações mais desfavorecidas.” Outros disseram que os trabalhadores das grandes empresas, especialmente aqueles de origem tâmil, sobreviviam em inóspitas edificações alinhadas horizontalmente, sem aeração, nem iluminação, expostos à lama, umidade, verminose, tuberculose, álcool – um álcool produzido à base de coco, altamente corrosivo.  Os homens ganham, mal e mal, meio dólar por dia. As mulheres e as crianças, menos ainda. “Meio dólar, interveio Tissa, é quanto custa uma xícara de chá, não em Londres, mas em Colombo, no bar de um qualquer hotel de turismo”.

Os estudantes suspenderam a fala e pediram tempo para preparar a apresentação do esboço da pesquisa a ser aplicada na comunidade. Aproveitei a pausa para ir com Claude e Tissa até a praia, ver de perto um barco que voltava da pesca. Um garoto de seus 10 anos, que estivera observando o movimento, nos fez sinal para ir até sua casa. Sua casa… uma choupana de nada, de nove metros quadrados, parede de taipa, nenhuma janela,  piso de areia. E a mãe do menino? Não, ainda hoje, tantos anos passados, não dá para esquecer o olhar e a ternura com que envolveu o menino, seu filho mais velho. Nem o orgulho com que sorriu enquanto lhe alisava o cabelo.  O olhar e o sorriso era tudo que guardava intato. O mais era um corpo moído, uma voz sumida, uma idade incerta. Falou que tinha 27 anos. Tivesse 23 ou 32 anos, que diferença faria? Tissa traduziu a informação de que o casal tinha cinco filhos. Que durante o dia, as crianças brincavam à sombra dos coqueiros, enquanto o pai se dividia entre a pesca no mar e a colheita de coco. Mas não foi preciso traduzir uma verdade que intuí na estrutura íntima da mulher. Uma verdade que expressava com os olhos e que emergia sob a forma de inaudível interrogação. Ela que se ocupava de tudo, parecia perguntar-se como resguardar, no espaço e no tempo, relações razoáveis entre aspectos urgentes da vida cotidiana. Como podiam coabitar, na cabana, ela, o marido, os filhos? Como abrigar-se da chuva nas horas de chuva? Como dormir? Como amar? Como velar o morto no dia em que houver um morto? Quem responderia aos estudantes se a pesquisa comportasse meio eficaz para registrar seu sentimento e sua palavra? Talvez dissesse, vocês são generosos, sua inquietação é válida, mas não suficiente para expressar o óbvio. Mas vamos adiante. Vocês concordariam que eu (e apontou o próprio rosto), que ele (e apontou o mar, estava o marido), que eles (e apontou os filhos) participemos realmente da busca de vocês? Espero que o remédio que encontrarmos juntos seja bom para vocês e bom para nós também. Fui interrompido em minha elucubração; voltei à tona. Era a voz da mulher dirigindo-se a Tissa e o seu gesto apontando o mar. Olhei o mar e vi, na praia, o barco que aportara e os dois pescadores que dele saíam. O sol poente deitava-se nas águas do oceano índico. Restos de raios atravessavam horizontalmente o coqueiral. Os dois homens pareciam desiludidos: a pesca, pelo jeito, não andara boa. O pôr-do-sol comunicava à paisagem uma beleza visceralmente triste.

Nada mais havia a fazer. Era preciso voltar aos estudantes.

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